terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Bonifácio – Precisa-se de Costureira

Bonifácio – Precisa-se de Costureira

Bonifácio caminhava a passos de passeio pelas ruas da cidade antiga. Contemplava as coisas como se fossem obras de arte de um artista desconhecido. Cada reboco de janela lhe revelava um sonho, uma lembrança, uma utopia. Num desses devaneios, Bonifácio viu a placa escrita à caneta grossa:

- Precisa-se de costureira com prática em alinhavos.

Por uma associação de ideias que só os sonhos podem alinhavar, Bonifácio lembrou-se da mãe falecida há mais de vinte anos. Engraçado, sua mãe nunca fora costureira e sequer a viu fazer uma bainha de calça.

Bateu a janela da costureira e foi recebido por uma simpática senhora.
- Bom dia, senhor!
- Bom dia, senhora! Minha mãe é uma excelente costureira, falarei com ela à tarde sobre a oferta de emprego, disse Bonifácio.
- Pois não, meu senhor. O serviço tem sido muito, preciso de uma pessoa disposta.
- Muito grato. Vou correndo avisá-la.

Saiu dali satisfeito e seguiu com o mesmo passo de turista observando as minúcias construídas pela humanidade. Trazia uma satisfação no peito, tinha feito a mamãe ressuscitar, dera-lhe vida. A tarde passaria no cemitério municipal São Miguel e Almas para dar a boa nova. Era Natal.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Bonifácio – Papai Noel

Bonifácio – Papai Noel

Bonifácio menino está ansioso, noite de Natal, vai ganhar um presente, com certeza, nunca esquecem dele. Papai Noel não esquece de ninguém. Os pensamentos são miúdos e tolinhos, claro, não é um menino excepcional nem tem sonhos maiores do que a idade permite.

Aquele ano pediu um par de luvas de goleiro, vinha se saindo bem naquela posição, apesar de jogar melhor na linha, e o pai ter-lhe proposto ser juiz. De direito, óbvio. Estuda, menino. Futebol é ilusão, todo mundo quer ser jogador. Todo mundo quer ser Pelé.

Mas o Bonifácio menino quer é mesmo receber seu presente, essas vozes adultas não chegam a pesar nos seus amiudados projetos.

E por fim, depois da sidra de maçã estourada, do peru esquartejado, do fio de ovos remexido, os presentes foram distribuídos. A Tia grita:

- Bonifácio!

- Ehehehehehehehehe! Grita mais alto o menino de cabelo fino e ralo.

Num canto, abre com carinho o embrulho. Papel verde carinhosamente ajeitado pela irmã mais velha. Lá está, branca, de couro, de marca, bem maior que suas mãos. Bonifácio menino sorri, que felicidade. Corre ao encontro da irmã, sabe que foi ela quem encomendou ao velho de barbas. Bonifácio menino tem um sorriso doce, sincero, meigo. Bonifacinho é piegas, tolinho, infantil.

Coloca a luva e experimenta com solenidade. Que momento, que felicidade. Olha em volta, todos a festejar, conversar, brindar mais um Natal naquela casa feliz apesar de todas as dificuldades que a vida em si teimava em apresentar. Bonifacinho é piegas, um romântico, um sentimental. Quase chora.

Inesquecíveis seriam as luzes daquele Natal. Bonifácio, no futuro, com felicidade recordaria. Nem jogador de linha, nem goleiro, nem juiz. Auxiliar de serviços, foi o que lhe restou e o que aceita porque lhe dá o sustento do necessário. Protesta, mas pouco. Com as luvas brilhosas e briosas, defendeu com maestria na quadra de cimento da praça. Fora quase imbatível. Senão pelo tempo que veio lhe distanciar de tudo aquilo. Mas não se arrepende porque o tempo tem dessas mesmo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Bonifácio - Feliz Aniversário

Bonifácio – Feliz Aniversário

Sentou com cuidado no sofá da sala de estar. Baixou a cabeça e verificou que o verniz do assoalho estava bem gasto. A mesa posta, uma torta de morango com a vela destacada para o parabéns. Bonifácio não tivera tempo de lavar as mãos e aquilo lhe dava a impressão de que tudo em si estava sujo. Ouvia conversas paralelas, contudo não distinguia os assuntos, o remédio fazia-lhe falta.

- Bah, mas tu tá sempre com essas bicheiras nas mãos!
- Isso é de trabalhar, não tenho tempo pra boutique.
- Tu tem é que te cuidar, sempre avoado, pensando besteira.
- Te devo alguma coisa? Pega a colcha, tá frio.

Se tivesse tido um pouco mais de inteligência, Harold não estava com a chefia da repartição desde sexta-feira passada. E tudo por conta dessa maldita política que só serve para engordar os bolsos dos larápios. Que vergonha, não levar nenhum presentinho para a Tia e ainda mentir que não tivera tempo. Por certo ela tinha notado a cara de derrotado dele.

Bonifácio olhou para Isaura e pensou que daquele mato não saía coelho. E como ria a desalmada! Ria mostrando todos os dentes. Meu deus, a vida andava toda enrolada e a outra naquela felicidade descabida. Hoje à noite teria uma conversa séria: ou ele ou o gato.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Bonifácio - A Festa à Fantasia

Bonifácio - A Festa à Fantasia


Bonifácio foi numa festa à fantasia e se tipificou de Palhaço. Pensou doze ou treze vezes se iniciava o trabalho com uma dose de uísque. Optou pela cerveja, e batatas fritas para rebater o malte. Da sua mesa, depois de alguns minutos, pode avistar a Mulher Maravilha sentada no outro extremo, sozinha. Viu que sua animação era tal e qual a dele. Pensou em se aprochegar, no mas, para uma conversa sobre a importância das festas à fantasia em plena destruição da mata amazônica, ou outro tema ligado às artes.

Acontece que a Bailarina Azul Cintilante, sorridente e na ponta dos pés, tomou conta da pista de apresentação, e por mais de duas horas envolveu a todos com seus passos acrobáticos, – ah, menos a Colombina que se retirou em protesto -. Era um balé moderno e bem sensual, mexia o ventre e os quadris com voluptuosidade jamais presenciada naquele local de primeiríssima qualidade. Uma mistura. O copo de Alexander não lhe escapou da mão nem quando o Pingüim a convidou para uma saída honrosa.

Bonifácio bebericou mais um pouco e voltou a pensar no uísque. A Mulher Maravilha estava fora do jogo, agora agarrada ao “Duas Caras”, inimigo do Batman, e aos beijos. A batata gosmenta esfriara na porcelana vagabunda e lascada nas bordas.

Quando o garçom passou, não teve dúvida: tequila, por favor. Dali para frente a coisa ficaria mais animada, tinha certeza disso. Recolocou o nariz de palhaço que estava esquecido no bolso. Antes do primeiro gole, e foi a última coisa que lembraria, pensou: Isaura que voltasse para a casa da mãe.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Bonifácio - A Praça

Bonifácio – A Praça



Bonifácio acomodou-se com parcimônia junto à platibanda do terraço. O edifício possuía sólidos seis andares. Apontou o rifle para a praça que, naquele sábado mormacento, estava cheia de alvos. A babá com os gêmeos, e de olho no office-boy que lanchava esparramado no banco azul; o vovô lendo as mesmices do matutino jornal e a sentir as pedras nos rins que lhe infernizavam; os meninos correndo na disputa da bola com irascível maldade; os namoradinhos e seus beijos demorados, os seus desejos insaciáveis. Tudo vivo e vivendo, e acontecendo, todo mundo pensando em alguma coisa. E Bonifácio também, cego à dor alheia, às contas vencidas, aos ônibus perdidos, aos papéis jogados por acaso no lixo, aos cartões esquecidos nos telefones públicos. Dali, fácil! Era só escolher quem o atirador levaria desta para o patamar celeste.



- Em quantas vezes dá para fazer?
- Duas.
- E a vista?
- Mesmo preço.
- E a garantia?
- Sete dias, depois é com o fabricante.
- Quanta canalice, né, seu!



O dedo no gatilho e o olho na caça. Bonifácio escolheu a placa de advertência que indicava mão dupla. Pléin! Na mosca. Muita gente, muita opção, pensou. Sábado não era dia de luxúrias. À noite pegaria um cineminha com Isaura: “Canção na Fonte da Piazza”, depois comeriam uma pizza na Dona Bella.



terça-feira, 14 de setembro de 2010

Bonifácio - A Morte da Cachorrinha

Bonifácio – A Morte da Cachorrinha

A piscina estava com meio metro de água suja, esverdeada. Chamou a chihuahua estralando os dedos sete vezes. A cachorrinha veio faceira, balançando o rabo pitoco. Não teve trabalho de empurrar o bichano com a ponta da botina. Quanto tempo poderia o canino nadar entes de afogar-se? Era uma nova modalidade para Bonifácio. A temperatura elevada ajudava na tarefa.

- Há vinte anos atrás não tinha esta maloqueiragem.
- Claro que tinha, mas a gente corria a pau.
- Eles não cuidam mais dessas pracinhas. Olha o lixaredo?
- Tinha zelador, instrutor, Kombi que levava a gente para outras praças jogar.
- Vamos, tá na hora.

Ficou observando a cadelinha por cerca de dez minutos, a língua de fora acusava o golpe. De fato, o óbito por afogamento se daria logo. Também, tão fraquinho, pet shop toda sexta-feira, ração premium, semente nas orelhas anti-estresse. E Bonifácio tinha pressa, aquilo era crime menor para sua carreira. Tinha compromisso, joguinho com os colegas do sindicato. Damião no time adversário. Eh, eh, eh. Ele que esperasse pelo revide da canelada da semana passada.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Bonifácio - O Roubo

Bonifácio – O Roubo

Rondou a gôndola por instantes, cachorro perseguindo rabo, focinhou para os lados com discrição. Enfiou o furto no bolso no exato instante que o segurança entrou no mesmo corredor do supermercado. O ronda freou o passo e mediu os atos de Bonifácio. Tudo parado. Atacante na marca do pênalti pronto para bater; arqueiro na expectativa; torcidas atentas. A metodologia aplicada à técnica se mostrava viciada, seria pegou pela terceira vez em menos de dois anos. O segurança avançou decidido em direção ao infrator.

- Dinheiro na poupança só adianta se a gente coloca sempre mais.
- E do jeito que anda, vai longe ainda.
- Tu vai ou não comigo?
- Tô com dor de barriga. Acho que não.
- Vai pedir dinheiro pra eles para ver os juros...
- Não esquece dos ovos de codorna.

Chegar em casa sem a iguaria seria catastrófico, Isaura ficaria irritada. E passar constrangimentos na sala do gerente era dose para mamute. E mesmo porque não tinha um puto na carteira. Quanta dificuldade!
O fiscal avançou decidido em sua direção. A centímetros de Bonifácio, calculou matematicamente a altura do amigo do alheio: primeiro nos olhos opacos, depois no bolso do contraventor. Por fim, um olhar cúmplice e passou ao largo dele. Bonifácio soltou a respiração suspensa por instante. Assim que se viu só e seguro, devolveu o furto para a ilha de mercadorias. Rabo de cachorro cotoco. Não convinha chegar à entrevista de emprego cheirando a salame italiano.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Bonifácio - Adultério

Bonifácio – Adultério

Abriu com cuidado a porta imaculada. Os olhos procuraram na sala retrô algum objeto que a denunciasse. Lá estava: uma sandália vermelha, solitária, entre a mesinha e o sofá. Era prova suficiente. Mais uma vez traído, fechou com cuidado a porta. Aguçou os sentidos e pôde escutar o barulho do chuveiro elétrico. Purificando-se ela. Quanto incomodo, quanto zelo.

- Se é pra ir, vamos de uma vez!

- E as cachorras, quando vamos dar as vacinas? Aquilo vence.

- Pegou as chaves?

- Peguei. Acho que guarda-chuva não, né?

- Hoje à noite ia bem uma carne de tatu, recheada.

Podia desligar o interruptor da caixa de luz, só por prazer. Mas era golpe sujo. Abandonaria o apartamento e a sua vida assim que saísse o dinheiro da ação trabalhista. Dera uma dentro não comentando nada com ninguém. Mas, na hora agá, ali, com a grana na mão, cederia aos seus encantos. Um trouxa sempre fora.

Entrou no quarto. Ela esquecera a toalha no cabide. Sempre igual. Pego-a e teve intenção de entregar. Ato contínuo, outro pé da sandália vermelha atirada desdenhosamente em cima da penteadeira, presente da tia Dulce, a incriminava inapelavelmente.

Sentou-se na cama, esperaria ela sair molhada do banho, e com a cara de tolo entregaria a toalha não sem antes desviar os olhos.



Em 25.10.2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Bonifácio – Uma Morte

Bonifácio – Uma Morte

Fechou a porta com cuidado, girando antes a maçaneta: lingueta para dentro, fechadura sem clique, ruído nenhum. Ainda com sangue nas mãos, descendo as escadas de granilite do edifício de 1954, tateou no bolso direito da camisa azul a carteira de cigarros. Logo que saísse à rua acenderia um para saciar o vicio. Fora tanta frieza desta vez que estava impressionado.

- Segunda-feira começa a vigília, vais?
- Vou. Mas antes me dou um tiro, com certeza.
- É uma semaninha só, parece que vai ter até salgadinho para quem ficar até o fim.

Aquele negócio de oferecer antenas digitais estava ficando muito manjado. As pessoas quase não abriam mais as portas, era muita coisa ruim acontecendo no mundo. Desta vez, se não mencionasse a tal da promoção, não entrava. E, coitada!, não deu nem um grito, medo puro, quase sem graça.

Só faltava passar o portão externo e pronto, estava livre. Não convinha pegar o cigarro agora, estava tentando para de fumar.

- O chuveiro está dando choque, qualquer hora destas fico grudada.
- Vai com um pano seco, usa chinelo. Tenho que inverter os fios para ver se funciona. Anísio disse que dá resultado. Tem o tal do neutro, também.

Bonifácio pensou em lavar logo a faca e se livrar da encrenca de uma vez. Logo ali uma praça com bebedouro. Era só esperar a mãezinha sair com o bebê e o cigarrinho seria acesso.

em 19.08.2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Bonifácio - Jogo de Futebol

Bonifácio – Jogo de Futebol


Não havia a menor possibilidade de ir ao jogo, a grande final. Além de estar devendo para todo mundo, tinha a rixa com o vizinho por causa do muro.


- O feijão tá queimando, não tá vendo?
- Feijãozinho ruim é assim mesmo. A Elvira não vem mais no sábado.
- Manos mal, depois da história do Patrício, melhor não vir mesmo.
- Abre a panela de pressão, coloca a carne, levanta!


E se colocasse um arame farpado era melhor, tela saia muito e Bonifácio não tinha habilidade para tanto. E esse negócio de ficar se espiando ficava até meio chato, vai que o outro interpretasse de outro jeito a coisa.


- Será que passa na tevê?
- Mas como! É final, minha nega. É final. Isso é partida pra todo mundo ver. Venho até pensando numa frase: “somos todos encarnados”, vou levar pro Alceu para ver se ele faz um texto.


Um arame farpado não saía caro, e na agropecuária não devia nada. Alicate pedia pro Vaz, até domingo estava tudo pronto.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Bonifácio – O Cunhado

Bonifácio – O Cunhado


Bonifácio cruzou os braços e esperou a explicação que parecia embaraçosa, mas não era.


- Eu tento, dizia ele, tento de tudo quanto é forma. Só que o meu conhecimento é maior, logo fico sabendo demais e por isso me desemprego com facilidade.
- E concurso público? Como é?
- Não, isso é pra gente mesquinha, medíocre. Livros parados na estante, traças, mofo.

O jeito era depositar mais um mês a pensão à irmã. O cunhado não queria nada com nada, um enrolador. Tanto conhecimento, duas faculdades, curso de extensão. Mas trabalho que era bom, nada!


- Amanhã tenho uma entrevista. Contabilidade pública aplicada ao privado. Dou um jeito, vai ver.
Bonifácio fez o cheque meio a contragosto, como nos meses passados. Os sobrinhos teriam o que comer. A meia furada no dedão o incomodava uma barbaridade. Isaura não dava jeito naquilo, nem naquele gato manco. Ele mesmo trataria de eliminar o rato, a coisa se prolongara por tempo demais.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Bonifácio - Enterro

Bonifácio - Enterro


- Será que o plano de saúde cobre a despesa do enterro?


- Funcionário público, raia média. Pelo que sei, não tinha direito nem a caixão de pinheiro. Tu vê, nem um salgadinho pra gente. Olha o coveiro...Nossa!


Bonifácio aguardava na entrada principal, olhava o céu nublado e avaliava: a chuva seria grossa? Guarda-chuva não trouxera.


A viúva entrou solenemente. Toda de preto, exceto pela guia do Senhor do Bom Fim, vermelha. O assoalho havia sido lustrado não fazia muito.
O defunto estava lá, esticado, uma cara de quem deixava dívidas e remorsos.
O outro cutucou:
- Olha aí, nenhuma lágrima.
- Eu disse, eu disse. Psiu! Tem bala aí?
O Padre só chegaria as quatro, o cemitério fechava as cinco, muito roubo naquele fim de mundo. O jeito era enganar o estômago com um cafezinho no boteco do outro lada da rua, a coisa se arrastava sem graça alguma.


Não, não, não. Ia ser fina a chuva, pensou Bonifácio. Entrou na capela, uma ave-maria e dava-se por terminada a empreitada.










terça-feira, 10 de agosto de 2010

Bonifácio - Asfixia

Asfixia


- E então, como foi a coisa?
- Tranqüila. Dormia, acho. À noite, antes das oitos horas, pediu leite com bolachas doces. Depois, arrastando-se, voltou para a cama. Não escutei mais nada. Depois...depois você sabe.
- E as apólices?
Bonifácio esfregou as mãos. Não era frio que sentia. Um gelo na alma.
- Não te preocupa. Tá no cofre, junto com o lenço uruguaio do papai, de 1950.
- E agora?
- Agora é só esperar o dia raiar.
Bonifácio foi na cozinha, acendeu o fogão. Um chá cairia muito bem.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

BONIFÁCIO: O Relógio de Pulso

Bonifácio: O Relógio de Pulso

Meu pai se chamou, durante sessenta e cinco anos, de Deodolindo. Um nome lindo para uma vida sem surpresas. Meu pai trabalhou como sapateiro, fumava palheiros, gostava de mulheres, de jogos. Sorria para os amigos e xingava minha mãe, sempre que podia e quando o feijão queimava. Meu pai tinha papas na língua e não tinha poupança. Era paupérrimo.

Meu pai morreu solito, num desses hospitais públicos que mais parecem uma prisão do terceiro mundo. Trocavam-lhe as fraldas três vezes por dia, alimentava-se através do soro. Dormindo, ajustava contas com Nosso Senhor. Dos olhos, sempre a lágrima clara, que nunca pude verificar se era pela vida, pelos filhos, pelo encontro com a morte e o céu-paraíso que tanto pregara em vida.

Mas, de tudo que pouco rendeu, uma coisa dele me ficou. Numa das raras vezes que fui visitá-lo, me deu um relógio de pulso, de fundo verde, caro, muito acima das suas posses. Antes de me entregar, Deodolindo me disse:

- Toma. É o tempo. Viste como o tempo passa, mas os ponteiros sempre voltam ao mesmo lugar?

Foi aí que a ideia de tempo rebateu em mim. Fiquei pensando muito sobre o que meu pai falara, aquele tempo que ele me dava, e refleti sobre a minha existência. Concluí, carente de maiores explicações, que o meu tempo estava lá na infância, oito ou nove anos de idade, e que hoje eu era aquele menino de lá, querendo sempre voltar e sempre amadurecido e sempre o mesmo. Não sei se melhor ou pior.

Não uso o relógio de fundo verde do meu pai. Sei que ele havia me dado o que de mais precioso tinha. Do relógio guardei o tempo, que o preservo, respeito e admiro. Meu nome é Bonifácio.

Em abril de 2010

BONIFÁCIO: O Namoro

Bonifácio: O Namoro

Bonifácio pegou o revólver, apontou para a cabeça e puxou o gatilho. Bonifácio queria morrer, e morrer por causa de Isaura, sua namorada. Bonifácio puxou o gatilho mas a arma falhou. Um clik pífio e o homem não morreu, não apareceu no Capital Notícias da cidade. A arma não prestava; Bonifácio, sim. Desistira de viver, era homem de decisão.

Isaura era uma daquelas mulheres espetaculares. Quando andava, se balançava e dançava, e tudo que havia a sua volta parava para lhe deixar passar. Isaura era uma beldade, doce, se vestia de branco, rodava a saia rendada. Corria na esquina, comprava um abacaxi, fazia um suco e bebericava à soleira da porta do número setecentos e vinte e quatro. Isaura sabia das suas qualidades e por isso judiava dos mortais pretendentes. Isaura era diaba de bonita.

Entre lapsos de tempo e outro pouco, um ano antes do trabuco falhar, Bonifácio se apaixonara de uma forma tal pela vizinha da frente que andava doente de amor. Acontece que ele não tinha como declarar o seu desejo, o rapaz era tímido, um leitor de romances de amor. Quase não saía, só estudava. E as revistas de mulher pelada as tinha escondidas no guarda-roupa desativado no quarto do quintal. O homem, o máximo que fazia, era espiar a beleza de Isaura quando passava na rua, através da cortina semitransparente do quarto da frente da Vovó Isabel. E só.

Um dia, Bonifácio bebeu um licorzinho de cacau, bebeu coragem e foi bater à casa da pretendida. Ofendida, exibida, casca de ferida, a moça bate-lhe à porta, como que lhe dizendo: te mata! No outro dia, Bonifácio bebeu dois licoreszinhos de cacau e bateu novamente à porta da amada. -Te mata duas vezes, disse ela. E assim, dia a dia, a garrafa de licor ficou seca e o coração do Bonifácio era maracujá esquecido na gaveta.

Na última tentativa, Bonifácio, sóbrio e sem licor, foi à casa de Isaura. Deu um murro na porta que acordou José, o gato de estimação dela:

- Se não me aceitares, me mato!

Ela respondeu:

- Deixa isso para mais tarde, entra, venha provar meu suco de abacaxi.

Quando Bonifácio botou a arma na cabeça, lembrou perfeitamente do mediúnico “deixa isso para mais tarde” de Isaurinha. O tempo ia se encarregar de acrescentar histórias à vida dos dois. A arma havia falhado, outro rumo haveria de tomar. Foi à venda do seu Antônio e comprou uma garrafa inteirinha de licor de cacau. Isaura que o aguardasse...



Em abril 2010

quinta-feira, 29 de abril de 2010

UM PASSEIO NO GUAÍBA

UM PASSEIO NO GUAÍBA

O lago Guaíba já deu muitas pescarias, meu pai nos levou muitas vezes para pescar. Mas desta vez não é de pesca que eu quero contar. Quero falar é de um passeio de barco que fiz com o Tio Dorinho.

Foi numa tarde de muito sol. Tio Dorinho me falou:

-Piá, vamos dar uma volta no Guaíba, de barco.

Cruzes. Como aquilo me deixou feliz. Passear de barco, pelas águas do lago que banha a nossa cidade, ver a cidade de longe, outros barcos passando, que sabe um peixe que outro. Ia ser uma maravilha.

Saímos a pé, afinal o porto era perto, coisa de vinte minutos, era perto do centro, onde existem muitas lojas, muita confusão e principalmente muita gente, muitos pés.

O nome do barco era Cisne branco, e de fato existia um cisne pintado no casco, tudo para mim era novidade. O Tio Dorinho perguntou ao moço quanto era o passeio e eu fiquei apreensivo achando que de repente o Tio Dorinho não tinha o dinheiro. Mas ele puxou dos seus velhos bolsos da calça de brim umas notinhas. Olhou para mim e perguntou ao moço que vendia as entradas se gente pequenininha que nem eu pagava. O moço disse que pagava sim, afinal eu ia ocupar um banco.

Saímos do porto bem alegre, eu com medo, e acho que o tio Dorinho também. Não sei se é possível ficar alegre e com medo ao mesmo tempo, só sei que a gente ria e ficava sério ao mesmo tempo. Eu me sentei bem colado com o Tio Dorinho, ficava olhando aquele monte de água enquanto o moço que vendera os bilhetes ia dizendo o nome das ilhas que passávamos, as casa abandonadas, e uma tal de ilha dos presos políticos que me chamou bastante atenção.

O passeio estava maravilhoso, eu quase nem falava, meu Tio também não, acho que estávamos muito felizes. Passamos por diversas ilhas, muito nomes. Ilha do Pavão, que na minha cabeça imaginei um pavão todo colorido, enorme. Ilha dos Marinheiros, e lá ia eu pensando em muitos marinheiros, todos com os seus chapeuzinhos brancos, Ilha do Inglês, Saco da Alemoa, Jacuí. O moço ia falando, eu imaginando muitas coisas, meu tio nem sei o que pensava.

O passeio ia tranqüilo, eu via aquele monte de água, sabia que não tinha muitos peixes por causa da tal poluição. Lá pelas tantas, quase no fim do passeio, o homem que era guia falou que aquela ilha à direita, pequena, com umas casinhas baixas, era a Ilha da Cadeia, a ilha que tinha, antigamente, os presos políticos, e outros tantos outros presos mais antigamente ainda. Ai sim eu fiquei impressionado, pensando nos presos, naquela ilha, isolada, no meio do Guaíba.

O Barco Cisne Branco aportou no cais. Eu e meu Tio Dorinho estávamos maravilhados. Descemos do barco e ele me pediu para que ficássemos ali, esperando a nova turma de passageiros entrar para um novo passeio pelas águas do Guaíba.

A embarcação já ia andando, quando o vendedor de bilhetes perguntou ao meu tio se a gente queria dar mais um pesseio, de graça. Puxa, de graça, pensei, que legal. E lá fomos nós para mais um passeio. E lá foi o homem dizendo as ilhas do Pavão... Puxa, como é bom ter as coisas de graça.

Quando passamos pela Ilha da Cadeia, Ilha dos presos políticos, parece que era mentira, olhei para ilha é vi muitos presos acenando para gente, diziam:

- Por favor, nos tiram daqui, somos inocentes, não fizemos nada.

Aquilo me deu dó, sabe. Fiquei com muita pena mesmo. Mais que ligeiro, e nisso eu sempre fui bom, arranjei uma corda grossa, da grossura de um punho de gente, pedi um pezinho pro meu Tio Dorinho, subi no teto da embarcação e atirei com todas as minhas forças a corda. Foi uma laçada e tanta. Pimba, acertei bem no centro da ilha. Daí não deu outras, os presos todos saíram da ilha, entraram no Barco Cisne Branco, e fugiram daquela ilha que alguém um dia os tinha colocado.

Chegamos da segunda viagem, e eu estava contente mesmo. Não contente de ficar rindo. Contente por dentro, contente por ter visto coisas que nunca mais iria esquecer. Como de costume, fomos a pé para casa, falando algumas vezes sobre as ilhas do Guaíba. Quase perto de casa, quando íamos atravessar uma avenida de com muitos carros, de nome Avenida Farrapos, eu gritei ao tio Dorinho:

- Vamos , tio, dá tempo de atravessar, os carros estão longe.

E o Tio me falou:

- Calma, guri. É certo perder um minuto da vida do que a vida em um minuto.

E a gente esperou os carros passarem, e depois atravessamos, bem devagar, com calma.

Meu Tio Dorinho era querido, tinha um corpo forte, um cabelo loiro bem comprido, e me deu muitos pezinhos, muitas vezes na minha vida.

terça-feira, 27 de abril de 2010

CONTOS CURTOS, DOIS

Contos Curtos


O Contador

Velho, de aparência abatida, barba por fazer, entra no ônibus de linha.

Senta-se no banco no meio do coletivo, do lado do corredor. Suspira.

Da pasta preta, de couro surrado, gasta nas pontas e sem brilho de tanto uso, velha, tira o caderno de capa amarela e a caneta quebrada e sem tampa, azul.

Dali não sai mais.

Desenha números e mais números, numa conta enorme, com algarismos que se confundem e não se encaixam, uma cobra soltando escamas.

Passaria o resta da vida naquele mundo se o ônibus não chegasse no fim da linha e se o cobrador, olhos caídos, não lhe avisasse que a estrada chegava ao fim.
Em 13.02.2008.


Gente

Meu pai tonteia pelas ruas da cidade.

Mais precisamente pelo centro, que é movimentado e interessante.

Meu pai parece um passarinho assustado, curioso.

Afora a vergonha, vai julgando o rosto, o jeito daqueles que passam.

Chega, meu pai, a conclusões tristes.

Lembra uma frase: “que futuro tem esta gente”?

Nada ou pouco pode fazer

Meu pai só pode observar.

Que futuro tem meu pai?

Em 13.10.2009


Reunião dançante

Entro de leve.

Um quarto quase escuro, alguém improvisou uma média luz, fuleira.

Música romântica, americana, melosa, no toca-discos.

Adolescente, - como eu queria dançar com uma delas.

Mas estão todas ocupadas.

Impossível, penso.

Cabelinho seboso, caído, liso, nos olhos. E saio.

Eu estava de penetra, é justo.

Até hoje sonho com aquela festinha.

Minha idéia de reunião dançante.

Em 21.09.2009


Saco

Arrasta o saco

Cheio de papéis dos banheiros.

O movimento do seu corpo é de condenada.

Dá dó. Ou não.

Depende de quem olha.

Tem olhos para tudo neste mundo,

Tem gente para tudo e

Tem tudo para a gente.

Arrasta o saco preto, sujo

De um quarto de banho para o outro, diria meu tio mais velho.

Banheiro de gente fina.

E

Não vê a hora de tudo acabar,

Voltar para casa,

Limpar o seu próprio banheiro e xingar todo mundo pela imundície deixada.

Em 17.09.2009


Chapista

Quererá adivinhar:

Este carne.

Este frango.

Este frango, carne e coração. Quiçá uma fatia de queijo em cima.

Esta nada, de regime, assaltou a geladeira ontem à noite.

Este magro por que um miserável, não paga muito pelo peso do prato.

Quererá filosofar:

Que vida,

Que espátula,

Que cheiro repugnante!

Ainda muda de vida e diz tchau à fumaça e banha.

Mas lá vem o dono da chapa...

Em 16.09.2009



Árvores


Se eu pudesse

Beijaria todas as mãos

Que plantaram estas árvores

Floridas da minha cidade.

E beijava quem as mandou plantar.

E quem as plantou.

Que cores!

Que espetáculo!

Que vida!

Meus olhos se achem de alegria nestas avenidas movimentadas e encantadas pela beleza destas árvores. Cada árvore me acena, me deixa passar, me impulsiona. Se eu pudesse Beijaria A mão de Deus E agradecia profundamente esta esperança que deposito nos homens Plantadores.


poeminha dedicado a meu irmão Roberto Branchi.





Chuva

João Antunes era morador de Bexiga

Localidade do Interior de Rio Pardo, aqui no Rio Grande.

Morava solito, numa tapera, perto dum açude.

João Antunes foi encontrado morto em frente ao casebre, numa árvore, bem enforcado, corda grossa.

No bolso do defunto, um bilhetinho com letras garrafais:

Isolda Berta, eu te amo.

A guarda conclui que o suicídio fora passional.

Mentira: o matungo se enforcara porque a chuva não deu trégua por cinco dias, inundando as esperanças de sol do gaudério.

Em 11.09.2009

Mãe


Quando ela ficava doente

A gente adoecia de fome.

Quem ia fazer nossa comida?

As manas não cozinhavam nada.

Mas mesmo debaixo das cobertas

Sentindo as piores coisas

Ela ia- nos ensinando a fazer o feijãozinho.
Em 25.05.2009


Morte

Sentei na beira da calçada,

O paralelepípedo estava gelado.

Mamãe já havia partido,

Meu irmão acabara de partir, no mesmo trem que agora fazia nova viagem, mesmo destino.

Lágrimas eu tinha pouco,

Mas minha cabecinha sentenciava: havia tantas coisas para serem conversadas. O embarque fora rápido demais.

Em 19.05.2009


Velho


Senta ao meu lado e conta histórias.

Todos os dias.

Às vezes as repete. É a idade, o tempo.

Será que as conta para não esquecê-las?

Volta e meia, reclamo...

Reclamo por reclamar porque já não posso viver sem elas.



Velho


Suas mãos calejadas vão desenhando arcos e curva de ferro.

Vão edificando meu projeto.

Explica-me a forma, o estilo, o modo.

Conta-me histórias para dar veracidade ao trabalho executado.

É frio o tempo.

É alguém que me conta o que a vida lhe ensinou.

E eu vou aprendendo.


Mãe


Com vinte e cinco anos minha mãe curvou-se pela primeira vez.

Baixou a cabeça e olhou para o chão, em busca de uma moeda, que fosse.

Dez anos passados, a mulher estava encurvada de forma tal que não havia como endireitar a carcaça.

Viveu feliz assim, por longos anos.

Criou-nos.

Nunca achou moeda alguma.


Em 14.05.2009

quarta-feira, 14 de abril de 2010

BONIFÁCIO: CASAMENTO

Bonifácio e Isaura estavam casados há um ano, mais ou menos. A vida andava boa. Noites quentes de amor, beijos demorados no portão antes das despedidas. Nada de filhos, reforça-se. Bonifácio assoviava aquele samba cadenciado, bem marcado, vivia bem humorado, se alimentava com satisfação. Isaurinha suspirava, amava até lavando os pratos, se lembrando dos amassos, dos tratos, dos braços do amado. A vida ia boa, cheirosa, e os planos eram muito para o futuro, e além, mas só depois de tudo, que nem queriam saber o que era.

Um dia, Bonifácio no trabalho repetitivo da repartição, sem querer, pensar ou dizer, observou uma pequena mancha na mesa de trabalho. Parecia um borrão de caneta, ou talvez de uma fruta, uma nódoa qualquer. Depois da distração, voltou à tela e continuou a lançar dados no sistema. Mas vira e mexe Bonifácio era atraído pela mancha e se abstraía das obrigações de servidor público. Pensou em uma lente de aumento, isso lhe daria uma ideia melhor sobre a falha na mesa, mas ali não o tinha.

Na hora do almoço, correu a uma loja e comprou uma bela lupa, daquelas com cabo de marfim, ou de chifre de bode, não tinha como precisar. De volta à repartição, ansioso, foi direto à mancha e não tardou a descobrir que era borra de café, com certeza era borra de café. À tarde, pediu licença ao chefe e saiu mais cedo. Passou na mesma casa especializada e comprou um microscópio. Bonifácio, investigativo, voltou para casa, satisfeito e feliz. Encontrara um rumo, e esse rumo era microscópio.

No mesmo dia, Isaurinha, que andava a ver flores e borboletas coloridas em tudo, ministrando sua aula aos adolescentes, se viu interrompida pelos pedidos dos alunos que a chamavam para si. Isaura havia parado junto à janela e olhava o céu, absorta à sala de aula, ao mundo terreno. O azul do céu a havia fascinado, e entre uma lição e outra, corria a janela e contemplava o infinito. No final do turno, coincidência, correu a mesma loja que Bonifácio havia comprara o microscópio, e comprou um telescópio.

Depois disso, Bonifácio e Isaurinha, tão unidos e grudados, aos poucos foram se deixando levar por interesse opostos. Bonifácio queria entender tudo aquilo que estava bem pertinho, a partícula menor das coisas; Isaura, com os olhos biônicos queria enxergar aquilo que estivesse mais adiante, a partícula mais além de tudo.

Os dois se amavam, disso não havia dúvida. Sempre voltavam ao centro, se encontravam, se beijavam, se gostavam, e este era o ponto de partida. Depois do porto seguro, cada um olhava na direção oposta, sabendo que sempre podiam voltar.

Autor: Alexandre Henrique Branchi

Em 13.04.2010

quinta-feira, 8 de abril de 2010

BONIFÁCIO: Histórias

Bonifácio

     Quando Bonifácio olhou o saldo da conta corrente, num desses caixas eletrônicos do centro da cidade, ficou num desânimo sem alento. Observava fixamente o monitor e não acreditava naquela cifra negativa, o sinal de menos à esquerda da quantia. Mais um mês na pindaíba. O problema maior era o aborrecimento com a Isaura e a questão da pensão às crianças.

     Veja que coisa: Isaura se engraçou com o Felício, o montador de roupeiros da Casa Jaú, e desgraçou a vidinha mais ou menos que Bonifácio levava junto a até então bem amada Isaurinha. Mas a questão agora era Júlia e Carlinha, filhas daquela união que foi atropelada pelo montador. Mais um mês elas teriam que se contentar com o vale rancho do sindicato, através da cooperativa dos funcionários do município, e, de lambuja, créditos automáticos no celular, debito em conta, e só. Lambam os grossos beiços, filhas!

     O diabo na vida de Bonifácio era o cartão de crédito e o cheque especial. Gastou toda aquela fortuna em que lugar? Quando? Bonifácio procurava o furo da bala e nada. A bodega do Português José ia sofrer mais um pênalti naquele mês. Ia pagar só a metade da bóia consumida. O diabo na vida de Bonifácio foi os lábios fáceis de Isaura.

     Olhando o caixa eletrônico com desânimo, Bonifácio apertou a tecla para que a maquininha devolvesse o seu cartão magnético, algum status ele ainda lhe daria, quem sabe um outro empréstimo para pagar o empréstimo do empréstimo. Mas o cartão não queria sair de jeito nenhum daquela boquinha preta rala. E ali nada de gerente ou funcionário para reclamar.

     Na tela da máquina, Bonifácio lia: cartão bloqueado, consulte a sua agência. O homem ficou exaltado e começou a xingar a monstruosidade. Não lhe importava que aquilo não tinha ouvidos. E câmeras de vigilância, se as houvesse, que fossem às favas.

     Bonifácio, na raiva, pensando na Isaura, naquele sorriso doce, naqueles lábios molhados, deu um chute tão forte na maquina que chegou a desligá-la. Deu tilt! Subitamente o cartão foi ejetado, como se fosse alguém que tivesse engolido algo e lhe fizesse mal. Uma criança cuspindo uma bolinha de gude. Bonifácio sorriu largo, por hora o seu problema fora resolvido. A vida que lhe trouxesse soluções! Pensaria em tudo mais tarde, depois do expediente, na solidão do quartinho de pensão de Dona Inácia, olhando a foto da top model Isabella pendurada com durex na divisória de madeira.
Em 08.08.2010
Alexandre Henrique Branchi

quarta-feira, 31 de março de 2010

DE QUANDO A MINHA MÃE MORREU - livro de contos


DE QUANDO A MINHA MÃE MORREU

Noite 1

O cão latia ferozmente junto ao portão enferrujado. A minha porta estava fechada, as visitas partiram.
Apaguei as luzes da casa, me escondi na escuridão da sala.
Pensei numa saída, numa reza, na minha mãe. Não podia chorar, eles me descobririam com facilidade.
Depois de toda a maldade que fiz, só me restava a sorte de não ser encontrado. Eu estava só: não havia companheiros. Eu estava só.
O cão tem mil dentes na boca ácida, e não para um instante, não dá sossego a minha consciência, não me deixa avaliar, medir, pesar. Eu estou tonto com as minhas ideias vazias.
Vou tomar mais um gole e dormir, talvez o cachorro desista e descanse um pouco, também.

Em 25.10.2004

Noite 2

Estendi a mão pálida para ver se ainda chovia, ou se a chuva ia chegar. Não pude olhar o céu, mas sabia que escuro estava e que as estrela pertenciam aos românticos daquela noite.
No negrume, no escuro, no breu, no preto, olhos ainda mais escuros observavam meus últimos movimentos antes da cama espinhosa. Antes fosse um bicho, um urubu a me olhar. Não era. Era gente. Gente negra, um menino virado em olhos. Não pude identificar o que queria. Eu estava cansado, havia sido um dia duro, penoso, sem pássaros, sem carrosséis, pipoca doce.
Olhos de um menino preto, antigo, antepassado, me olhando. Fechei a janela, ele os olhos. Sinto-me culpado por alguma coisa, mas não enxergo claramente. Vou dormir.

Em 26.10.2004

Noite 3

Ouviu sua própria voz chamar. Era uma voz cansada, baixa, pouco exigente. Se tudo tivesse terminado igual a esses jogos de encaixar, ele não precisaria berrar tanto, dizer repetidamente as mesmas palavras. Soletrá-las bem alto. Tentar imprimir uma verdade que nem ele reconhecia como certa.
Não fora o momento de fraquejar. A àquela hora da noite não poderia mais haver recusas, falsidades. Era preciso dizer repetidamente sim. E enquanto ela não cansasse, dissesse chega!, ele continuaria repetindo a mesma reza.
E agora, quando algumas luzes se apagaram, essa sua voz vem cobrar-lhe o ônus da intolerância, da estupidez. A Noite vai ser longa e infinita.

Em 11.2004

Noite 4

A tarde vinha caindo, quase noite. Eu e ela. Corremos para dentro da casa verde. Conosco, uma revoada de gafanhotos famintos, solenes.
A hora era o nosso momento de felicidade. Que íamos para a cama de lençóis de seda, que penetrávamos nossas carnes, que nossas bocas se juntavam sofregamente.
Mas os gafanhotos eram enormes e em número considerável. Milhares. Pegamos baldes, pás, vassouras. Colocamos música clássica. Iniciamos o trabalho de coleta enquanto a noite adentrava.
Sem amor, fomos vencidos pelos bichos verdes. Cansados e tristes, saímos da casa. E eles continuaram a comer os tapetes, colcha de retalhos, cetim, amor, num trabalho alegre, saboroso e satisfeito.

Em 11.2004

Noite 5

O vento entrou rasteiro pela soleira da porta azul, carcomida. Novembro. Corri para a sala de jantar onde pratos imundos decoravam um ambiente sombrio.
A luz havia se apagado há muito tempo. A vó dormitava no quarto; o vô, no cemitério. De ouvido eu lia o vento que contava coisas antigas, mofas, sem graça nenhuma. Eu não tinha um só irmão para conversar naquele momento. Explicar o que estava acontecendo, e por que o vento insistia tanto.
Noutros tempos eu pediria para arrumarem a fresta da porta, hoje em dia não. Primeiro vieram os ratos, agora aquele vento que me perseguia até a sala de jantar, imunda.
Seria um mês ventoso, e enquanto os avós dormiam cada um no seu canto, eu agüentaria com firmeza o inoportuno daquela noite.

Em 02.11.2004

Noite 6

Corri em direção da casa, entrei. Fechei a porta com precisão japonesa. Verifiquei o esquadro com o olho esquerdo. Fazia-se necessário chamar Alberto para dar uma solução na simetria das duas paralelas verticais, tendo como referência o vidro jateado do centro.
Esqueci tudo. Não havia chegado contas nem outras correspondências. Era preciso entrar em contato com alguém, mostrar que ainda tinha vida no meu coração. Que tudo não passava de uma fatalidade, que cortei ou cortaram as fatias do queijo e que a distribuição foi injusta entre os presentes.
Mesmo Alberto não viria, sei...Não existiam mais móveis na casa, só uma única porta de ferro a me encarcerar no mundo que criei.

Em 11.2004

Noite 7

A família transitava sem cerimônia por todas as lacunas da edificação. Eu e meus amigos colocamos cartazes pelos cômodos secundários da casa. Os cartazes diziam que era proibido circular sem a minha autorização. Grifo, redundante: as letras eram garrafais. Tudo indicava que a minha autoridade e estima estavam em baixa, mesmo.
Era preciso chamar o exército do Haiti. Estabelecer a paz na propriedade. Os parentes esbarravam na minha personalidade, e só não me diziam coisas inapropriadas porque eu mantinha o meu semblante igual ao do meu bisavô recalcado. Dele eu tinha um retrato na parede.
Procurei um apito dentro das cânforas indígenas, encontrei apenas um escapulário feito de aros de prata. Nem rezar os afugentaria. Um líder da família um dia me disse: isso aqui também nos pertence, use autoridade!
Impossível conviver com tudo isso. Melhor reabrir os porões e ver o que há por dentro.

Em 15.11.2004

Noite 8

Entrou com as botas embarradas. Havia chovido muito naquela madrugada. Enlameado estava o caminho que leva a casa. De um barro argiloso, daqueles que grudam e não há água que os limpe. Tenho entre os dedos a palavra “soturno”, não sei onde usá-la.
Vendo ela sujar o chão polido, o qual eu havia trabalhado o dia inteiro, continuei calado. Suas botas de salto e cano alto, couro grosso, pretas, embarradas, imundas, andadoras de caminhos promíscuos e escusos, me provocaram arrepios de medo. E ainda havia a vergonha estampada no meu rosto esquálido. Noutros tempos eu poderia reivindicar, usar palavras baixo calão, implorar. Agora só me restava o silêncio, o conformismo. Eu estava usado e acabado; ela, forte e impotente com suas botas pretas de fivela niquelada. O resto era uma mulher maravilhosa, linda, dentro das botas.
Assim que a sua presença e perfume passaram pelo corredor em direção ao quarto de banho, sujando a mim profundamente, fui à dispensa buscar água, pano e sabão para limpar a minha desgraça.

Em 17.11.2004

Noite 9

Ferido com o golpe quase mortal da lança, arrastei-me até o quarto. O sangue cor de vinho reavivava as cores do assoalho.
Antes disso, pura curiosidade, abri a janela da sala. O barulho de mato mexido me chamou a atenção. Há tempo que eu fora avisado pelas “vozes noturnas”: “não abra a janela”.
Bastou um segundo de desatenção. Mal deu tempo de iluminar o quintal com o candeeiro. A flechada foi direta, no peito, exata, ancestral.
Eu estava pagando por coisas que outros fizeram, eu tinha certeza que a culpa não era minha. De qualquer forma, a casa estava toda fechada... Foi desatenção. A vingança veio mais rápida do que imaginei.
Agora só uma efusão de ervas me aliviaria da dor, mas eles estavam lá fora, dançando a minha dor. Naquela noite, certamente, não me ajudariam.

Em 11.2004

Noite 10

As ferramentas estavam a minha disposição, todas novas. O facão eu guardaria para uma emergência, um ato definitivo e impensável. E neste caso poderiam me acusar de qualquer crime. Mas só se eu usasse o facão e é por isso que eu o esconderia, por cautela.
Talvez o início do trabalho se daria pelo teto, depois pelas paredes caiadas e por último pelo assoalho embranquecido, gasto. Não sei, não tinha me decidido ainda. O modo como faria o trabalho fazia sentido, de baixo para cima. As ferramentas estavam ali, a minha disposição. O alerta familiar já havia soado: “tudo sob tua responsabilidade”.
A casa era centenária. Mas isso pouco me importava. O que ela trazia e me atormentava eram os poemas escritos a carvão nas paredes, eram as histórias assobiadas pelas frestas das janelas, as lendas sussurradas pela máquina moderna em funcionamento. A máquina destoava de tudo.
Por isso tudo, por mim, pelo que tenho por dentro, é que era preciso usar as ferramentas novas e maquiar a casa, iniciando à noite, na companhia dos fantasmas. E o facão só seria usado para enfrentá-los num último momento.

Em 19.11.2004

Noite 11

Fechei a porta do quarto com cautela, zelo, medo. Não havia a menor possibilidade da porta ranger: nem um barulho, nada, óleo nas ferragens. Virei-me em direção a sala, um copo de água, na cozinha, para tirar o amargo da goela, ou ajudar a descer o soluço preso, engasgado.
Nem meio passo em direção a sala, escuto um gemido fraco, mas penetrante. Dizer que não escutei não posso, era a minha obrigação estar atento a tudo. Mais um passo, mais um gemido. Que dor, as nossas! Ela não me perdoava, não me deixava descansar, nem um minuto. Aqueles ais repetidos acusavam-me eternamente.
Ai, ai, ai...Mesmo assim fui à cozinha. Os ais cada vez mais acusadores. Tomei o copo de água, voltei correndo ao quarto do outro enfermo. A vigília seria longa naquela noite.

Em 23.11.2004

Noite 12, Casa

Pela porta dos fundos adentrei na casa. Meti o pé com força na madeira, afinal aquilo estava emperrado há anos, desde o dia em que ela partiu. Móveis não havia, e se vestígios existiam, a princípio, não os vi. A pena pingava ainda da mesma forma de antes. A pena, que falo, era na cozinha, o lugar da casa onde falei as coisas mais importantes da minha vida.
Da sala constava apenas o eco do meu suspiro e ainda o barulho do vaso de margaridas que um dia ela deixou cair, espatifando ainda mais o nosso coração, que era um só, um dia.
No resto da casa não havia nada. Antes de sair, olhei para a porta da frente e enxerguei o bilhete que de pronto li: “Tranque a porta, querido. Te vejo mais tarde, beijo de quem te ama”.
E depois, nunca mais.

Em 02.03.2005

Noite 13, Casa

Pegou a vassoura e varreu todo o lixo para a rua. Eu havia dito, tenho certeza disso!, que não fizesse aquilo, que cuidasse mais com as recordações.
É verdade que a casa estava imunda, mas aquilo era coisa de século, culpa do tempo e dos meus insanos antepassados. Aquilo tudo era história, ela não podia fazer a varredura sem a autorização necessária.
E, ainda, não satisfeita com tamanha loucura, ateou fogo em tudo, no quintal, enquanto eu gritava desesperadamente pela janela, preso. Malévola: ela sabia da minha servidão junto a casa, se não fosse isso a estrangularia com minhas mãos imundas.
A casa ficou limpa, é verdade. Mas do que adiantava aquele brilho se a cabeça ainda doía de tanta desgraça.

Em 04.03.2005

A casa, 14

Chegou com um estandarte enorme à porta da nossa casa e exigiu que deixássemos a propriedade imediatamente. Que aquilo tudo, por lei, lhe pertencia, era sentença garantida, transitada e aprovada na mais alta Corte da Nação.
Mas os meus argumentos ainda estavam na garganta e eu debatia com aquele senhor mesmo tendo os meninos a choramingarem de fome às minhas pernas.
E o doutor não queria nem saber, era causa ganha, que caíssemos fora de uma vez ou ele usaria da brutalidade da lei e nos expulsaria a força.
O choro das crianças já estava insuportável, então pedi educadamente que aquele senhor voltasse mais tarde com a sua bandeira. Fechei a porta abruptamente na sua cara vermelha e pude escutar, por muito tempo, seu suspiro de indignação do outro lado.

Em 07.03.2005 – aniversário de Rodrigo Branchi

A casa, 14 b

Perguntei insistentemente porque tanta coisa. A casa já estava lotada de bombachas, facões, cuias de chimarrão, laços, chapéus. E agora ela vinha com aquele monte de batons, sombras, pentes e sandálias.
Ali sempre fora um lugar de macho, mulher na cozinha ou no tanque. E eu e os meninos na sala, vendo no aparelho de imagens, cuspindo no chão. Bem que a piazada queria ir ao encontro dela, correr para baixo da saia e me deixar. Mas o que é isso! É desde pequeno que se ensina quem é que reina nesta vida!
E agora ela vem com essas novidades que me deixam aborrecido. Vou jogar os cachorros em cima dela! Vou dar uma sova nessa coisinha que teima em se apropriar do meu espaço. Ah, vou. Tranco no quarto e compro comida pronta no bar da dona Maria.

08.03.2005 – Dia da Mulher

A Casa, 15

Mal eu havia acordado, os olhos ainda inchados, depois de uma noite mal dormida. Mal havia dado os primeiros passos até a suíte, enxaguado o rosto, cuspido. Mal havia pensado no café com pão, ricota e requeijão, e depois jornal, informação. Mal havia iniciado o maldito dia que prometia um sol abrasador. Mal tudo isso e mais outras banalidades e eu ouvi os passos do cavalo no paralelepípedo da rua em frente da minha casa.
Aí espiei pela fresta da janela e vi aquelas malditas crianças a recolher lixos que a casa produzia. Famintos pela sujeira que eu não quis, que eu não dei a mínima. E eles ali, com o seu pangaré cansado, esfomeado, faminto seu igual, a recolher aqueles restos e a acabar com suas infâncias, e, também, com o meu dia.

Dia 15.03.2005 – dia chuvoso depois da seca.

A Casa, 16

Eu estava vencendo, já há algum tempo, a luta contra os bichos voantes no caquizeiro. A fruta amarelava um pouco e lá ia eu com meu gancho gigante a puxá-la.
Os bichos estavam loucos, e me esperavam em cima do muro, todas as tardes. E eu não estava nem aí, aquela árvore me pertencia e tudo que desse nela era meu. Eles que morressem de fome, que se extinguissem de uma vez por todas e não me incomodassem mais.
Um dia, na hora da sesta, ouvi no forro aquela gritaria incrível. Eram ratos enormes que vasculhavam toda a memória do telhado. A luta ia longe, ainda pensei antes de voltar à árvore e retirar os frutos ainda verdes, antes dos pássaros famintos.

Em 22.03.2005

A Casa, 17

Entrou apavorada e apavorando todo mundo. Estávamos confortavelmente sentados no sofá da sala, olhando o noticioso matinal à procura de uma desgraça qualquer, uma que nos saciasse logo cedo. E ela, com os seus cabelos desgrenhados, que não havia como arrumar de tão horrorosos que estavam, adentrou no nosso sossegado lar dizendo que não queria mais nada a não ser morrer e mandar todo mundo para o inferno.
E nós ali, olhos esbugalhados, tomando o nosso cafezinho especial, característico, de primeira, e ela com a sua expressão perdedora, derrotada.
E antes que ela passasse o dia inteiro nos incomodando com suas picuinhas, mandei ela fechar a matraca. Que se desse o diabo do respeito, e que nos deixasse acomodadinhos no nosso sofazinho vermelho.

Em 24.03.2005 chuva fina

A Casa, 18

A casa estava caindo aos pedaços. As pessoas, os ditos amigos, diziam que era hora de colocá-la a baixo, acabar com o bando de cupins que tudo devoravam. Eu estava muito cansado daquilo. Tanto cupim me fazia um mal danado. Eu não aguentava escutá-los, eles com suas pronúncias corretas, adequadas e bem apropriadas. O mundo estava em destruição. O maligno vencia com facilidades o benigno, e eles ali, na minha orelha poluída, imunda, jogando mais porcaria para dentro. Que deixassem a casa ruir, que ela também fosse vencida, ora! Passei anos a fio tentando varrer a sujeira para debaixo do tapete e tudo fora inútil, alguém sempre denunciara.
Depois que desabasse, quem sabe, eu poderia, então, desfrutar do olhar de perdedor que almeja vingança ou aposentadoria.

Em 31.03.2005

A Casa, 19

Pediu licença e saiu da casa. Deixou alguns vestígios pelas peças. Com certeza queria ser lembrada de alguma forma. Eu, por mim, por meu coração e pelo meu jeito malvado de ser, dei de ombros e fui ver as formigas que passavam na pia de inox, inoxidável. Maravilha.
Que fosse mesmo e que fosse de verdade, para sempre. Já havia anunciado a sua partida há tempos. É claro que eu ficava mudo, sem opiniões, a decisão fora dela, e a vida também. Chega um tempo que a gente diz que ama, mas ama ova nenhuma. É pura aparência, acomodação. E que fosse e que não esquecesse dos duzentos e oitenta e três bilhetes de amor que eu deixei pendurado na geladeira fria da discórdia, da intolerância, dos rancores.
Aquele amor era finito, deixaria pouco mais que um assoalho gasto. A casa agora era a minha prisão.

Em 05.04.2005

A Casa, 20

Antes de bater a porta na minha cara, disse-me que era impossível compartilharmos o mesmo sabonete, a mesma pasta de dentes, as mesmas dores lombares, os mesmos pecados da infância, os momentos em que nos faltaram com afeto, e que ficamos num canto, chorosos, tristes, vendo as enormes pernas dos adultos passarem, em outra casa, indiferentes a nossa presença.
Pela portinhola pude ver ela sair pelo portão. Miserável: nem uma última olhadinha de compaixão, de pena que fosse.
Foi-se rua de paralelepípedo afora. Penso: fico com a casa, com a história, com as crianças que corriam cá e agora cresceram e se foram lá.
Não vou desistir. Entro na cozinha, coloco a água para o mate. Tenho as violetas que ela esqueceu de quebrar. Pela janela vejo a horta, e isso me basta, por enquanto.

Em 27.04.2005

A Casa, 21

A bola rolando no corredor, os meus olhos atentos buscando os movimentos frenéticos. As crianças, com suas canelas finas, brancas, com chutes fracos, faziam a pelota percorrer os caminhos da casa.
E olhando a bola, que rola e me olha, atento, feliz que estamos alegres. O seu movimento faz tudo ter um sentido mais amplo e objetivo para a existência. Felicidade que te faz sentir existente e te marejam os olhos.
E aqueles chutes débeis, divertidos, direcionais à bola pelos caminhos passados em que passei: infância. Não preciso de mais nada, a não ser o movimento alegre e feliz da bola. O tempo felizmente voltou para mim.
E quando, cansados, os jogadores vêem ao meu encontro, eu só quero abraçá-los e beijá-los. Agradecer pelo que acabaram de me dar: felicidade, vida, gol.

Em 04.05.2005

A Casa, 22

Era um dia especial, mas estava fora da casa. E eu, preso ainda lá dentro, só podia olhar o sol maravilhoso da manhã. Um galo atrapalhado cantava, o diabo! Eu sentia o cantar do bichano como uma gozação do infeliz.
Dentro da casa tudo era condenação. Os móveis me diziam: viu! Tiveste o tempo necessário para acariciá-la, consolá-la, amá-la. Mas só agora percebes que não fizeste isso a tempo. Bem feito, ingrato!
Cruzei as mãos às costas, baixei os olhos e a cabeça. Ah, se eu tivesse lágrimas...O dia era especial, de lembranças daquele rosto infinitamente dócil e amável.
O dia era especial. Só os meus dignos pensamentos se salvaram, acho. Colhi aquilo que plantei e agora lamento o que tenho nas mãos!

Em 05.05.05 – cinco estrelas

A Casa, 23

Ando de um lado para o outro da casa. Penso numa saída digna, elegante. Os olhos me observam e estão por todos os cômodos. E eu não sei mais o que dizer, e parece que todos lêem meus pensamentos.
Houve um dia, numa manhã de sol, que apareceu uma oportunidade de redenção. Era o sol da manhã, e clara era a oportunidade. Eu sabia que a um passo estava a minha felicidade, a minha glória.
E foi naquela manhã que eu a perdi. Fiquei quieto, medroso, observando a luz do sol dirigir-se para outra casa da vizinhança.
Agora ando de um lado para o outro, procurando o que dizer antes da luz artificial apagar-se. E a plateia, a espera, me olha com olhos enormes que não tenho coragem de encara.

Em 13.05.2005

A Casa, 24

Os músculos cansados, atirados e impotentes, descansando nas rugas amarguradas do meu rosto...(que frase bem composta, leia novamente, perdeste algo, é certo).
Tive medo de confessar a ela e a todos que por ventura entrassem na casa, do meu desânimo de encarar o mundo, de ter esperança de combatê-lo, de duelar contra esta condição miseravelmente humana, contra a imposição de tudo o que não está certo. Calamidades.
Vi aquele rio em fúria depois da tormenta, e o vento violento de um tufão a levar pelo barro ou pelos céus, tristes e indefesas, as crianças meigas e ingenuamente humanas. Meus músculos doíam e minhas costas não podiam suportar a dor de uma cruz dura e pesada.
A casa estava gelada, e ainda senti suas mãos a roçar-me os cabelos como um consolo. Ela não podia entender minha dor. E então eu chorava baixinho, escondido do mundo vencedor e cruel.
O inverno chegaria triste naquele ano.

Em 23.05.2005

A Casa, 25

O povo lá fora exigia a minha saída da casa. Organizaram uma manifestação contra a minha permanência. Para eles, a situação era insuportável. Não iam manter no poder um covarde que nem eu. Sempre de pijamas e pantufas, a verdade é que eu tinha pouca força para solucionar os conflitos mais óbvios.
Achei aquela manifestação um tanto quanto exagerada, afinal havia muitos anos que eu permanecia assim, esperando primeiro os acontecimentos, depois tomava decisões pífias. Da última vez que senti que o clima estava pesado demais, tomei a decisão de banhar-me, e com isso silenciei a oposição e principalmente o guardião do prédio principal.
Trácius! Gritavam o meu nome e no fundo eu ficava orgulhoso daquilo. Meti a cabecinha para fora da portinhola, - todos fizeram silêncio – e sentenciei: hoje não haverá poda das plantas. Satisfeitos, foram, um a um, de volta aos seus afazeres, satisfeitos com o comandante que elegeram.

Em 06.06.2005


quinta-feira, 25 de março de 2010

DA ESQUERDA PARA A DIREITA

DA ESQUERDA PARA A DIREITA

     Uma semana antes de ser internado na Pinel, hospital psiquiátrico da cidade, declarou à mulher e aos filhos, à mesa de jantar, (entre coxinha assada, polenta frita, suco de uva), que concordava com a internação, talvez estivesse louco mesmo ou simplesmente era uma questão de reorientação social adequada. Precisava aprumar o pensamento. Ares novos.

     Tudo se passou há dois anos atrás. Estava Ariovaldo pronto para sair ao trabalho, manhã de inverno, dia claro, quando uma ideia absurda veio-lhe a mente: era preciso fazer uma faxina geral no pátio da casa. E a obsessão se dava quando a mente insistia em direcionar que a limpeza tinha que iniciar da esquerda para a direita. Absolutamente. Rigorosamente.

     Já no volante do carro, Ariovaldo passou o dia de trabalho inteirinho pensando na tarefa. Brigava com seus pensamentos e sabia que alguma coisa estava errada. Na hora do almoço, num desse botequinhos da vida, - que o salário não dava para comer salmão -, antes de dar a primeira garfada, remoeu o trabalho da limpeza, sempre da esquerda para a direita. E imaginava-se do lado esquerdo do terreno, armado de pá, vassoura, sacos, luvas, enxada, e outros utensílios pertinentes à empreitada.

     Então pegou o garfo com a mão esquerda e iniciou o abocanhar do feijão com arroz do lado esquerdo da boca. Não foi fácil comer assim, mas devorou a comida o mais depressa possível. O resto do intervalo ficou imaginando o cantinho do terreno, a tarefa lhe agradava. Pensava também em Delma, a cozinheira do boteco em que estava, mas só um pouquinho.

     Naquela mesma noite revelou o plano para a mulher, que a princípio apenas o olhou de soslaio. O marido insistia do “da esquerda para a direita”, e quando foi dar-lhe o beijo costumeiro de boa noite, assoprou: da esquerda para a direita, no ouvido esquerdo da bem amada.

     E foi assim que Ariovaldo foi “saindo da casinha” lentamente, sem se dar conta. Num breve, pediu férias, passou na loja do Messias Ferragens e Ferrovias,  e veio todo faceiro para casa. Acordou cedo na manhã seguinte e inicio o trabalho. Ariovaldo começou exatamente como havia planejado, da esquerda para a direita, junto ao muro, perto do taquaral. Ariovaldo ficou a manhã, a tarde e adentrou a noite naquele faina. Quando a esposa se deu conta, foi ter com Ariovaldo por que ele não desembrenhava:

- Tem de ficar bem limpo e organizado, respondeu ele com ar de cansaço.

     E nisso se passaram cinco dias, e Ariovaldo ali, improdutivo, reforma agrária. Foi quando a família se deu conta que Ariovaldo estava variando. Num conselho de família, (agora regado à costela de porco, farofa, aipim e suco de laranja), atestaram que o homem estava louco. No seu afazer, Ariovaldo matutava e conversava sozinho sobre o cantinho esquerdo do terreno. Tinha o ar de derrotado.

     Passada a fase da Pinel, depois de alguns anos, todos acreditavam que Ariovaldo estava curado, inclusive ele, eventualmente. Mas à noite, sempre que podia, saia para o pátio e dava uma olhadinha para o canto do terreno e ficava pensando: dá esquerda para a direita, sempre.

Em 24.03.2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

HILDA

Hilda

Conheci Hilda Hirst quando, num dos meus primeiros passeios pelo bairro da minha nova residência, cruzei com a velhinha numa destas agradáveis ruas transversais da nossa cidade. Não sei se era primavera, mas me agradaria ter certeza disso. Levava comida e água para os gatinhos de rua, que eram vários, multicoloridos. Simpatizei na hora pela senhora.
Do que sei de Hilda é pouco, mas o suficiente para um vizinho discreto: nasceu em 1924, casou em 1940 com um sujeito chamado Clodoaldo ou Adroaldo, e não tiveram filhos. Ele morreu dez anos depois do casamento, ou menos. Ela, dona de casa, daquelas que regam as folhagens todos os dias, principalmente uma popularmente chamada dinheirinho, pilea microphylla. E as demais folhagens também, se bem que com menos carinho; ele, metalúrgico, especialista no controle de qualidade no fabrico de talheres classe A, mas iniciou na C.
Hilda tinha um pescoço absolutamente encurvado para frente, absurdamente horizontal, usava perucas de gosto duvidoso, batom vermelho-exagerado e vestidos idos há muito tempo. Antigos, floridos, compridos. E Hilda possuía com maestria o sorriso mais agradável que já presenciei na minha vida. Era encantador, suave, doce, verdadeiro. Sempre quando eu a avistava, corria-lhe ao encontro e esperava o meu bálsamo para as mazelas em gerais, que era o seu sorriso. Sempre me sentia muito bem depois de trocar meia dúzia de palavras com a Hilda Hirst, a octogenária.
Não faz muito avistei um enorme caminhão de mudanças junto à casa da Dona Hilda. Parei na calçada e fiquei por minutos parado na calçada oposta para ver se obtinha alguma informação. Aproximei-me do motorista que organizava o vai e vem das quinquilharias e perguntei pela dona da casa.
- Morreu.
Depois fiquei sabendo pelo vizinho que Hilda tinha deixado um bilhete onde, após sua morte, doava todos os móveis, eletrodomésticos e essas outras coisas - que tanto necessitamos em nossas casas - para o Mensageiro da Caridade, que é uma instituição religiosa que vende a preços populares as coisas recebidas.
Perdi Hilda e seu sorriso. Perdi seu gesto afagando os gatos rejeitados. Perdi a mão que regava uma macega qualquer, com tanto carinho. Penso que perder não é nada bom e que isso não acrescenta nada na vida, ao contrário do que já tanto escutei: tudo é um ensinamento, menino.
Dias desses espiei os novos inquilinos da casa da bondosa Hilda. Discreto, olhei para o pátio e vi uma senhora regando as folhagens que um dia foram de Hilda. Sorri.
- A vida continua, Hilda. A Vida continua minha velha.

Em 16.03.2010

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A LOJA DE NATAL - CONTOS

Alexandre Henrique Branchi


A LOJA DO NATAL

(CONTOS)


A BEATA


Envelhecida, quatro filhos. Quem dera nunca os tivesse. Todos os dias praticava suas domésticas crueldades, todo o santo dia. Um dia maltratava um; outro dia outro, depois outro e outro. Assim era sua vida. Mas a consciência aquietava-se quando entrava na igreja, olhava o pastor, gritava, levantava as mãos, sorria, chorava. Pedia perdão, fazia promessas, orava. Sempre, todas às tardes, às seis horas: missa. Saía da casa do Senhor leve, solta, preparada para novas e cotidianas maldades. Uma tarde, durante o culto, num 25 de dezembro, a voz Demoníaca encheu-lhe os ouvidos: “-Não fui eu quem nasceu hoje. Agradeço-te. Fomenta-me em teu peito com desumanidades. Fomentam-me com falsa igreja, com falsos atos, rezas e suplícios”. A velha, desesperada, correu para fora da igreja, ajoelhou-se na calçada e pediu perdão a Deus. Por um instante, divino!, o mundo parou: a humanidade olhou na direção daquela beata velha e esperou pela palavra de Deus. Deus não tardou. E com sua voz gutural proferiu em todos os idiomas: “-Neste momento meu filho está nascendo, e ele está levando amor, compaixão, bondade e compreensão. E naquele segundo Deus percebeu que toda a sua criação estava Lhe ouvindo. O momento mágico pouco demorou a desfazer-se. E no segundo após Deus constatou que poucos Lhe ouviam. Deus via a beata voltar para casa e pressentia na própria carne as iniqüidades que ela iria cometer com seus filhos, por séculos e séculos.

O HOMEM QUE TOSSIA MUITO


Enquanto a cidadezinha cortava o peru e brindava o nascimento do Filho do Pai, ele morria tossindo, sem poder dizer as últimas palavras. Era daquelas tosses ininterruptas. Era muito mais que uma tosse: era um ai terminal. Os filhos do pai, em volta, queriam escutar as últimas palavras, o derradeiro pedido. A vida do pai, antes da terrível tosse, foi praguejar aos que andavam a sua volta. Sabemos o que ele gostaria de implorar: “-Hoje, perdoem-me”. Mas a vida não lhe deu trégua naquele último dia. A vida lhe deu trégua o tempo todo, menos naquele último dia. Tarde. Antes do último suspiro, tudo o que ele pôde fazer foi criar uma perceptível lágrima no canto do olho, todos notaram. Lágrima que correu até o travesseiro e extinguiu-se no ruído constrangedor daquela tosse. Num último momento, nobre, a lágrima implorou todos os perdões de uma vida mesquinha, pobre, sem luz, sem bolas de Natal.


A MULHER QUE NÃO DISSE UM AI


A ceia estava na mesa. Enquanto ela arranjava o prato das frutas natalinas, ele, no quarto, às escondidas, arrumava suas roupas para partir definitivamente. Tiveram três filhos. Depois do nascimento da última filha, ele lamentou a vida, desprezou a humanidade, procurou outras mulheres. Ela ficou calada, nada contestou, não se amargurou. Triste, via a transformação do marido. Nada ela fez de errado: lavou com amor e carinho todas as camisas, sempre desligou humildemente o programa predileto de televisão quando o amado chegava cansado do trabalho. E daí por diante. E ele, então, saiu do quarto, passou por ela, não disse adeus nem feliz Natal. E ela, inutilmente, enquanto a vermelha vela queimava e a porta batia como o martelo de uma sentença inapelável, perguntou-se onde havia errado. E aí sim. Bebeu, chorou, pensou em se matar. Aquela noite iria marcar o resto da sua existência. Naquela noite ela descobriu, mesmo triste e contrariada, que quando a farsa é descoberta, um menino nasce e trás consigo o verdadeiro amor que um dia possa existir.


O HOMEM QUE FOI EMPURRADO PELA VIDA


Morreu numa tarde de Segunda-feira. Uma Segunda-feira fria, antevéspera de Natal. Andava. Apertava entre os dedos o dinheiro para comprar o pão. Um garoto de rua, na tentativa de furtá-lo, empurrou-o bruscamente. Sem forças nas pernas, cambaleante, bateu com a cabeça no meio fio da calçada, há poucos metros da padaria Vitoriosa. Nunca, até então, tinha sido assaltado. A vida lhe consumiu num empurrão. O menino Jesus, prestes a nascer, o encontro no corredor tênue que faz ligação entre a vida e a morte. O homem, não percebendo quem era o menino, perguntou: “-Por que me empurraste?”. E Jesus respondeu: “-Para que pudesse me conhecer. Eu sou a mão que te empurrou para a vida, eu sou a mão que te empurrou para a morte. Eu sou a mão, sempre”.

O INDIGENTE


À tardinha, a cidade iluminada pelas luzinhas de Natal. O indigente ia pela rua, alheio a qualquer celebração. Sujo, castigado, barba e cabelo crescidos. Passou em frente à janela de uma linda casa, branca, de fachada iluminada por mil luzinhas, e estrelada por um fofo papai Noel abisonhado. O louco tirou o pênis para fora das calças, estimulou-o até enrijecer, e iniciou uma frenética masturbação. Quem passava, olhava e admirava. Curiosos, falseavam os olhares diante da exposição constrangedora. Ninguém chamou a polícia, nem fez maiores ós. A humanidade acostumou-se a cenas insólitas. O indigente ejaculou em frente à janela da linda casa branca, guardou o membro murcho e saiu tão demente, tão inocente quanto qualquer outro louco poderia sair. Da alva casa luminosa, meia hora depois, já noite, uma linda senhora de saltos altos saiu com sua cachorrinha para o passeio noturno. A cachorrinha, ao ultrapassar o portão, esperta, cheirou o semen na calçada de basalto, balançou o rabinho e deitou de costas sobre as nódoas. A senhora de saltos altos estranhou a atitude. Puxou a cachorrinha. Puxou a cachorrinha e pensou: animais.

O GRANDE POUPADOR.


Era final do mês e ele ainda possuía muito dinheiro na conta corrente. Não doava, não comia para economizar. Durante todo o mês, poupava. No fundo da sua pequenez o que ele queria é que os colegas de repartição viessem pedir-lhe algum emprestado. Quando isto ocorria, dizia aos pedinte que também não tinha dinheiro, que gastara em bobagens, que já emprestara a outros. O Natal se aproximava e o dinheiro que tinha no banco dava para comprar um caminhão. No dia 23 de dezembro, um colega veio pedir uma pequena quantia para fazer a ceia. O grande poupador não deixou por menos: não emprestou alegando, também, falta de dinheiro. O pedinte teve um Natal muito pobre e deprimente. O poupador teve um Natal muito farto, pediu para que todos os familiares dessem as mãos e agradecessem a vida boa que Deus lhes dera. Deus ficou triste com aquele pedido. Chorou pelo seu fracasso. Antes um pouco do infinito, para compensar o seu erro, o Criador ainda chegou a tempo de evitar a explosão de uma estrela. Um brilho a menos na humanidade, lamentou a Pedro, João e Judas.

O ADOLENCENTE APAIXONADO


Pediu que a esposa e as filhas fossem indo na frente à casa da sogra, era dia de Natal. Trancou bem a porta principal e dirigiu-se ao seu quarto. Na última porta do guarda-roupa, à esquerda, dentro de uma caixa de sapatos, retirou várias cartas antigas. Procurou atentamente a de envelope esverdeado. Abriu-a lentamente e iniciou a leitura saboreando cada palavra. Era uma poesia, destas bem amorosa, escrita por ele na adolescência. Diziam os versos que a morte o viesse levar, que não havia mais razão para viver, que nada valia um centavo. E na última estrofe a rima era pobre, o poema se revelava infantil, apontava que nada se perdia se o mundo não conhecesse o medíocre poeta. E o segredo daqueles versos serem guardados com tanta precaução eram simples: o poeta menor aprendia a amar a humanidade, aprendia a ser filho do bem.


A MORTE DO PAI


Vestiu seu melhor traje e foi ao cemitério. Não era dia de finados, o mundo cristão comemorava o nascimento de Cristo. Para ele, o falecimento do pai. No cemitério, além das almas dos mortos, raros visitantes. Sentou-se em frente ao túmulo do pai, falecido tragicamente num acidente de automóvel. Esperou que a noite baixasse, locomoveu a lápide de mármore e iniciou saltos frenéticos por cima dos restos mortais. Saltou até cansar, e antes de fechar a sepultura, descansou e descansou. Fechou. Voltou para casa pensando na pobreza do seu espírito, na dor da sua alma, na descrença no Pai, na miséria da humanidade e nas coincidências absurdas.


O HOMEM E A PIZZA


Quando chegou em casa, passando do meio-dia, e não encontrou a mulher e os filhos, pensou abruptamente em morrer. Mas a fome que sentia era tamanha, e os problemas na repartição eram tantos, e as contas a pagar eram muitas, que abruptamente desistiu daquela ridícula idéia. Discou para o telepizza, ligou o jornal do meio-dia, cantarolou uma musicazinha. O motopizza chegou, entregou e voltou. O homem pegou ketchup e mostarda na geladeira, prato, talher. Almoçou. Pensou em decorar a fachada da casa com luzes coloridas, decidiu comprar presentes e distribuí-los em vilas carentes no Natal que logo chegaria. Antes de sair e voltar ao trabalho, num reflexo de memória, pensou: talvez amanhã eu me mate.

O ERRO DO PAPAI NOEL


Eram grandes amigos, estavam sempre unidos, trocavam idéias e ideais. Eram irmãos de fé, de coração. Num certo Natal, Papai Noel arranjou namorada para um e a amizade estremeceu. Num ano novo nem se cumprimentaram. Na Páscoa não suportavam olhar um para o outro. Em trezentos e sessenta e cinco dias, se detestavam. Quem conhecera aquela amizade e via aquela desavença mútua, pouco podia perceber. Só quem compreendia a separação eram os dois ex-amigos: o amor e a imperdoável injustiça do Papai Noel. Papai Noel não tem conseguido ser justo.

O SER HUMANO E SUA BOA INTENÇÃO


Estava caminhando em pleno calçadão da Rua da Praia, no centro da cidade grande. As lojas decoradas com luzinhas e papais Noel com certeza reportavam a uma grande festa, menos a celebração do nascimento do menino. Numa das esquinas, quase às escondidas, deparou-se com um jovem cego tocando teclado elétrico. Passou rapidamente pelo músico e ouviu um tímido som . Pensou: amanhã coloco um bom dinheiro na caixa deste músico-cego-pedinte. Sentiu no coração uma piedade comovedoras, quase chorou. Talvez fosse o colorido das lojas, a exuberância dos shoppings, talvez. Ficou com pena do tímido som do teclado, -não do cego!-, da impotência da caixa de som do cego. Na repartição, à tarde, pensou na questão com carinho. Jurou, então, que pingaria, até o final daquele ano, alguns trocados na caixa do pedinte. No dia seguinte, de manhã, caminhando pela mesma rua , avistou o jovem cego há uns dez metros. Fez menção de colocar a mão no bolso e pingar a moedinha. Mas não o fez. Na repartição, à tarde, esqueceu do cego. E assim passou sua vida. Passou muitos vezes por muitos cegos, indigentes, necessitados, e nunca deu um centavo. Fora um homem de boa intenção, e de sorte. Morreu naturalmente, dormindo.

O HOMEM QUE OROU POR NÓS


Quando a esposa morrera tragicamente tomada pelo câncer, não teve dúvidas: por conselho de um tio, resolveu freqüentar a igreja, amenizar sua dor, sua estada na terra. Rebatizou-se nas águas, iniciou a leitura do evangelho, vestiu-se de terno e gravata, fez novas reflexões sobre o Natal. Todos os meses depositava o dízimo. Do Criador, só cobrava uma coisa: sua dor. Ia ao culto todos os dias após o trabalho. Tornou-se um homem bom, pregador do verbo de Deus. Certo dia, sentiu dores fortes no peito. Muito a custo foi ao médico. Diagnóstico: câncer. Continuou indo à igreja, depositando o dízimo, orando pela humanidade. Um dia não pode sair de casa. Um mês depois, pecador mas cheio de fé e esperança no ser humano, na humanidade, na vida, morreu. O Pastor foi o que mais sentiu sua ausência no mundo: a caderneta do dízimo não recebeu o carimbo impresso: pago. O homem foi para o céu e perguntou a Deus: “-Onde está minha mulher?”. Deus respondeu: “ Dentro de ti. Junto da tua fé. Contíguo ao teu amor”.

O CEGO


Naquele dia acordou feliz. Não destas felicidades irradiantes, explosivas, de causar inveja. Humildemente feliz. Barbeou-se com cuidado, vestiu-se combinado, passou perfume por trás das orelhas, nos punhos. Saiu à rua. E mesmo não concordando com toda aquela propaganda enganosa do Natal, acreditou que aquele era um dia feliz. Antes de chegar à repartição, assustou-se com um cego que apregoava a venda do bilhete lotérico, extração Papai Noel: milionário!, berrava o cego. Voltou-se ao vendedor, comprou-lhe a sorte. Saiu imaginando felicidades: se ganhasse daria algum ao cego. Mais: compraria muitos daqueles sonhos estampados nas vitrines. Ainda mais: preencheria todos os cupons para concorrer àquelas promoções de automóveis. Pois, então, correu o sorteio: ganhou, ficou rico. Largou a repartição, viajou, esqueceu o cego e sua vida ficou feliz. O cego continuou vendendo muitos outros bilhetes premiados, em vários outros lugares, tornando muitas pessoas ricas. Ninguém nunca retribuiu ao cego. O cego nunca ficou feliz. O cego era Deus e ninguém nunca chegou a desconfiar.

A LOJA DO NATAL


Era funcionário público, não ganhava mal. Gostava de andar de ônibus , olhar as fachadas das casas antigas de Porto Alegre. A época era de Natal, a cidade estava enfeitada, reluzente. No trajeto de volta para casa, atentava o funcionário, todo o santo dia, através do vidro do coletivo, uma loja miserável, azul caiado, com pouca mercadoria à venda, nada de adereços natalinos. Aquela loja o chamava à realidade. E sempre, como um guardião, observava um velho que ficava à porta do estabelecimento, esperando o raro freguês. Ganhava, o trabalhador da repartição, bem. Resolveu, como a época era propícia, descer algumas paradas antes de casa, passar pela loja e comprar qualquer coisa. Não sabia exatamente o motivo da razão emotiva daquele ato. Sentia. Sentia uma atração. Sentia uma atração inexplicável pela loja, pelo velho, pela ausência de freguês. Assim o fez. Desceu do ônibus, em frente à loja, caminhou em direção ao guardião. O velho o observou pelas grossas lentes esverdeadas, fez um lento aceno positivo com a cabeça e deixou o freguês entrar, seguindo-o em escolta até um pequeno balcão improvisado. O comprador em potencial observou que a loja localizava-se na ante-sala de uma casa tomada pelos comedores de madeira. Assim que o comprador parou, o velho fez o mesmo. De traz de uma cortina de banheiro, saiu um homem aparentando quarenta anos. Homem singular: cabelos compridos, mãos que tremiam, um tremelico constante na cabeça. Gentil, o vendedor perguntou o que o freguês queria. Sem saber o que realmente comprar, olhou a prateleira, botou os olhos num vidro que continha botões de camisa: “-Botões, os do vidro”, apontou. A figura singular pegou, tremendo, o vidro. Despejou velhos botões no balcão e perguntou quais ele queria: “– Todos. Qual o preço?”. O vendedor hesitou. Deu um grito e chamou a mãe que apareceu, também, por traz da cortina: “– Ele quer todos os botões. Quanto custam?”. A mãe, que era filha do velho que continuava inabalável atrás do comprador, fixou seus tristes olhos no comprador, hesitou por instantes, e como se vendesse a mercadoria mais importante da sua vida, revelou que custavam cinco dinheiros, para espanto do pai, do filho e do espírito daquela época. O comprador retirou a cédula da carteira, enfiou os botões no bolso, saiu agradecendo. Voltou para casa a pé. Contou à esposa da aquisição. Decorou sua árvore de Natal com botões coloridos. Foi o Natal mais verdadeiro daquela família. Foi o Natal mais belo daquela família da loja. A loja azul caiado, passado o Natal, fechou. Em seu lugar, e também no resto do quarteirão, construíram um shopping center, lindo, imponente. Shopping que nunca chamaria a atenção do funcionário público, shopping que nunca teria velhos botões para vender.

* * *

Capa: Mila da Rocha Fernandes, minha esposa. -
Editado em dezembro de l998, do jeito que deu.
p.s. a capa não saiu no blog porque sou meio analfabeto para essas tecnologias, mas um dia coloco.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

CREPÚSCULO - de uma série que deu no que deu

Crepúsculo:
De uma série que deu no que deu.

Um

Hoje chove muito na minha cidade, chovem pensamentos na minha cabeça. Não sei por que chove tanto... Seria para agitar o córrego calmo que tenho dentro de mim? Essas coisinhas que tenho aqui dentro, que acontecem na cidade, naquilo que vejo. E, também, na cabeça daquele homem que caminha sem rumo, trôpego, que avisto da minha janela. Viste lá? Ele vai caminhando na chuva, atravessando o parque, sem guarda-chuva. Chove na sua cabeça: ele está pensando no seu sapato furado, no seu papo danado e, talvez, no filho que deixou de ser amado. Pela sua ignorância, pela aridez da cabeça que recebe água da chuva e não rega nada.
Em 10.12.2009


Dois

Outro dia eu estava no ônibus, sentado lá do banco de trás. Chovia bastante na minha aldeia. De repente senti a freada do carro, imaginei o pé do motorista pisando firme no pedal e cerrando os olhos numa expressão de terror. Imaginei que uma criancinha, olhos azuis, em busca da bola, atravessava inocentemente a rua. Mas parte era invenção. Eu estava lá no bando de trás, na cozinha, não vi nada, nada, nada, além da freada, que nem brusca foi. Mas tudo isso passou no meu pensamento, nessa cabecinha rala. Eu estava apreensivo com várias outras coisas: perdi as eleições, tive que assinar um ara, o povo da minha aldeia andava mal das pernas, como sempre. E então eu tive estes pensamentos, e penso que a gente pensa muita porcaria quando se está preocupado com coisas, coisaradas. He, vida.

Três

Luizinho chegava ao local de trabalho, dava um sorriso meia-boca, os olhos cadavéricos por mais uma noite praticamente em claro – fazia um segundo turno à noite como motorista de táxi - e já contava a piadinha, gaguejando, não maioria das vezes sem graça alguma. Piadinha à toa, até ele forçava o risinho, era para quebrar um gelo que não existia entre nós, na repartição. Restava-me apenas dizer um “barbaridade”, como quem dissesse: que merda de piada. E no mais íamos falando mal das pessoas, mal do presidente da nossa instituição, da crise, do time, porque coisa ruim é o que não falta para a gente falar. Pois bem, o fato: um dia ele não contou a piadinha. Disse que estava doente e que a sua chefia não acreditava. Notei que ele estava com a pele amarelada, e a associei à jornada dupla de que ele fazia para sustentar os três filhos e a mulher que tinha “pobrema de nervo”. Um dia ele ficou pior, foi operado e não pôde mais sustentar a mulher e o três filhos. E não pode mais contar aquelas piadas que eu hoje acharia engraçadíssimas. Gostaria de saber para onde ele foi, se guarda por nós, pecadores, se é um anjo da guarda para seus filhos. Se conta as piadas lá, lá aonde a gente não sabe onde é.

Quatro

Uma vida com sol ilumina a alma, uma cidade com sol revela encantos escondidos. Leopoldo Morais andava indignado da silva, muito mesmo. Chovia há duas semanas sem parar na metrópole. Os seus problemas eram graves, sei, e os conheci bem de perto. Doença de uma tia, solteirona, fiscal da Fazenda Nacional aposentada. Mas eis que numa bela quarta feira, São Pedro deu uma trégua e liberou o sol. Meu Deus, como aquele sujeito mudou, houve quem dissesse que o viu sorrindo, de leve, de bocheca. Eu o conhecia bem, este sujeito que falo, ele não era de sorrisos, e nem acreditava neste negócio de sol. Verdade é que na quinta-feira tudo voltou ao normal: chuva e indignação. A titia até hoje não morreu, cento e dois anos, virgem. Tenho pena do Morais.

Cinco

Eu empurrava meu carrinho de supermercado, -no super, é claro!- cheio de frutas e verduras, e repentinamente veio a imagem da minha mulher. Por um momento quase chorei. Não por minha mulher ou por algo que ela tenha, um doença que seja. Não, ela é bem sadiazinha. O fato de eu quase chorar deve estar ligado a algo de mau que fiz a ela. Não sei exatamente o quê. Mas deve ter ser por aquelas maldadezinhas no final das tardes entediantes.

Seis

Um copo de café para suportar tudo isso. Quem é que se entende? Quem é racional, o civilizado. Nos mostram coisas estranhas como se tudo fosse normal, do dia-dia. Bem, digo não a tudo isso. Quero sol no pátio da minha casa, tomar o amargo gostoso, inventar pássaros contado no meu jacarandá. Acho que também nasci torto, que nem o outro, acho. Tenho idéias de um mundo melhor, mas deixa para lá, quem se importa.

Sete

O menino gemeu a noite inteira. O menino chorou por três dias consecutivos. Era a famosa dor de garganta, o médico diagnosticou. Quanto sofrimento, pois não. Quanta dor, e a gente não sabia. Mamãe ficou do lado o tempo inteiro, tirando a febre, dizendo coisas carinhosas, amorados, cantando cantigas de ninar. O papai não fez tanto, mas fez o que pôde. Uma injeção com a agulha bem grande, na bunda, o berro, o choro, o pavor: a cura, pois não. Ambos choramos a dor, dolorosa. A dor da dor.

Oito

Um homem puxa o seu carrinho de papelão com braços enormes. Leva a força de quem deve alimentar muitas bocas. Eu fico no meu carro, olhando aquela força humana passar. Observo que dentro do carrinho de papelão tem uma criança, que se diverte, e que ajudando a empurrar o carro de papelão há uma outra criança, com braços tão finos, esqueléticos. Eu no meu carro, meu filho no banco de trás, observando. Lomba acima vai o carrinho, procurando papelão. As voltas com o carro vai uma família, procurando comida. E nós ali, impossibilitados. Só um olhar, rápido, uma dorzinha, passageira.

Nove

Deixou seu filho na escola, passou-lhe um frio na alma. Gostaria de estar vinte e quatro horas com aquela criança, observa todos os seus passos. Puro amor. Um menininho de dois anos de idade, que não fala nada e diz tantas coisas. O amor tem dessas coisa: amores inexplicáveis.

Dez

Dois homens, humildes, conversam sentados num muro caindo aos pedaços. A paisagem, a suas costas, é uma vila caindo aos pedaços, com crianças e cachorros esquecidos brincando, fazendo a sua arte. O que me importa é o que eles estão conversando, e porque eles não estão trabalhando. Trabalhando num escritório, na obra, numa carroça de recicláveis, num hotel, numa gerência. Trabalhando. E a paisagem, os meninos e cachorros, a vila, o céu que os protege ficam em segundo plano. Fica para mais tarde, mais tarde, quando eu tiver menos cansado.

Em 2009

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...