sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

CREPÚSCULO - de uma série que deu no que deu

Crepúsculo:
De uma série que deu no que deu.

Um

Hoje chove muito na minha cidade, chovem pensamentos na minha cabeça. Não sei por que chove tanto... Seria para agitar o córrego calmo que tenho dentro de mim? Essas coisinhas que tenho aqui dentro, que acontecem na cidade, naquilo que vejo. E, também, na cabeça daquele homem que caminha sem rumo, trôpego, que avisto da minha janela. Viste lá? Ele vai caminhando na chuva, atravessando o parque, sem guarda-chuva. Chove na sua cabeça: ele está pensando no seu sapato furado, no seu papo danado e, talvez, no filho que deixou de ser amado. Pela sua ignorância, pela aridez da cabeça que recebe água da chuva e não rega nada.
Em 10.12.2009


Dois

Outro dia eu estava no ônibus, sentado lá do banco de trás. Chovia bastante na minha aldeia. De repente senti a freada do carro, imaginei o pé do motorista pisando firme no pedal e cerrando os olhos numa expressão de terror. Imaginei que uma criancinha, olhos azuis, em busca da bola, atravessava inocentemente a rua. Mas parte era invenção. Eu estava lá no bando de trás, na cozinha, não vi nada, nada, nada, além da freada, que nem brusca foi. Mas tudo isso passou no meu pensamento, nessa cabecinha rala. Eu estava apreensivo com várias outras coisas: perdi as eleições, tive que assinar um ara, o povo da minha aldeia andava mal das pernas, como sempre. E então eu tive estes pensamentos, e penso que a gente pensa muita porcaria quando se está preocupado com coisas, coisaradas. He, vida.

Três

Luizinho chegava ao local de trabalho, dava um sorriso meia-boca, os olhos cadavéricos por mais uma noite praticamente em claro – fazia um segundo turno à noite como motorista de táxi - e já contava a piadinha, gaguejando, não maioria das vezes sem graça alguma. Piadinha à toa, até ele forçava o risinho, era para quebrar um gelo que não existia entre nós, na repartição. Restava-me apenas dizer um “barbaridade”, como quem dissesse: que merda de piada. E no mais íamos falando mal das pessoas, mal do presidente da nossa instituição, da crise, do time, porque coisa ruim é o que não falta para a gente falar. Pois bem, o fato: um dia ele não contou a piadinha. Disse que estava doente e que a sua chefia não acreditava. Notei que ele estava com a pele amarelada, e a associei à jornada dupla de que ele fazia para sustentar os três filhos e a mulher que tinha “pobrema de nervo”. Um dia ele ficou pior, foi operado e não pôde mais sustentar a mulher e o três filhos. E não pode mais contar aquelas piadas que eu hoje acharia engraçadíssimas. Gostaria de saber para onde ele foi, se guarda por nós, pecadores, se é um anjo da guarda para seus filhos. Se conta as piadas lá, lá aonde a gente não sabe onde é.

Quatro

Uma vida com sol ilumina a alma, uma cidade com sol revela encantos escondidos. Leopoldo Morais andava indignado da silva, muito mesmo. Chovia há duas semanas sem parar na metrópole. Os seus problemas eram graves, sei, e os conheci bem de perto. Doença de uma tia, solteirona, fiscal da Fazenda Nacional aposentada. Mas eis que numa bela quarta feira, São Pedro deu uma trégua e liberou o sol. Meu Deus, como aquele sujeito mudou, houve quem dissesse que o viu sorrindo, de leve, de bocheca. Eu o conhecia bem, este sujeito que falo, ele não era de sorrisos, e nem acreditava neste negócio de sol. Verdade é que na quinta-feira tudo voltou ao normal: chuva e indignação. A titia até hoje não morreu, cento e dois anos, virgem. Tenho pena do Morais.

Cinco

Eu empurrava meu carrinho de supermercado, -no super, é claro!- cheio de frutas e verduras, e repentinamente veio a imagem da minha mulher. Por um momento quase chorei. Não por minha mulher ou por algo que ela tenha, um doença que seja. Não, ela é bem sadiazinha. O fato de eu quase chorar deve estar ligado a algo de mau que fiz a ela. Não sei exatamente o quê. Mas deve ter ser por aquelas maldadezinhas no final das tardes entediantes.

Seis

Um copo de café para suportar tudo isso. Quem é que se entende? Quem é racional, o civilizado. Nos mostram coisas estranhas como se tudo fosse normal, do dia-dia. Bem, digo não a tudo isso. Quero sol no pátio da minha casa, tomar o amargo gostoso, inventar pássaros contado no meu jacarandá. Acho que também nasci torto, que nem o outro, acho. Tenho idéias de um mundo melhor, mas deixa para lá, quem se importa.

Sete

O menino gemeu a noite inteira. O menino chorou por três dias consecutivos. Era a famosa dor de garganta, o médico diagnosticou. Quanto sofrimento, pois não. Quanta dor, e a gente não sabia. Mamãe ficou do lado o tempo inteiro, tirando a febre, dizendo coisas carinhosas, amorados, cantando cantigas de ninar. O papai não fez tanto, mas fez o que pôde. Uma injeção com a agulha bem grande, na bunda, o berro, o choro, o pavor: a cura, pois não. Ambos choramos a dor, dolorosa. A dor da dor.

Oito

Um homem puxa o seu carrinho de papelão com braços enormes. Leva a força de quem deve alimentar muitas bocas. Eu fico no meu carro, olhando aquela força humana passar. Observo que dentro do carrinho de papelão tem uma criança, que se diverte, e que ajudando a empurrar o carro de papelão há uma outra criança, com braços tão finos, esqueléticos. Eu no meu carro, meu filho no banco de trás, observando. Lomba acima vai o carrinho, procurando papelão. As voltas com o carro vai uma família, procurando comida. E nós ali, impossibilitados. Só um olhar, rápido, uma dorzinha, passageira.

Nove

Deixou seu filho na escola, passou-lhe um frio na alma. Gostaria de estar vinte e quatro horas com aquela criança, observa todos os seus passos. Puro amor. Um menininho de dois anos de idade, que não fala nada e diz tantas coisas. O amor tem dessas coisa: amores inexplicáveis.

Dez

Dois homens, humildes, conversam sentados num muro caindo aos pedaços. A paisagem, a suas costas, é uma vila caindo aos pedaços, com crianças e cachorros esquecidos brincando, fazendo a sua arte. O que me importa é o que eles estão conversando, e porque eles não estão trabalhando. Trabalhando num escritório, na obra, numa carroça de recicláveis, num hotel, numa gerência. Trabalhando. E a paisagem, os meninos e cachorros, a vila, o céu que os protege ficam em segundo plano. Fica para mais tarde, mais tarde, quando eu tiver menos cansado.

Em 2009

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...