quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A BICICLETA TIGRÃO DO RATO


A Bicicleta Tigrão do Rato


Eu andava lá pelos dez anos de idade. Minha vidinha se resumia a estudar pela manhã e brincar na pracinha à tarde. Essa Praça tinha o nome de Florida, que floria mesmo, amarela, certamente porque era primavera. Se houvesse um concurso da canela mais fina da zona, o troféu de primeiro lugar era meu. Quando eu tirava a camisa, os ossos das costelas saltavam, parecia uma espinha de peixe invertida. Mas isso não vem ao caso. E aqueles dias andavam ensolarados, coladinhos uns nos outros, e felizes na maioria das vezes. Que aborrecimento maior poderia ter um menininho de dez anos? E assim passavam meus dias, dourados e floridos.
Meu clã incluía nove irmãos, dentre eles o Pedro, meu mano número seis. Na época, ele já era maior de idade, trabalhava, ganhava, ajudava a mãe nas despesas da casa. Tinha o cabelo em cachinhos loiros, jogava bola bem, tinha sonhos enormes, sabíamos. Seu andar era dez para as duas, e nas calçadas de pedras grês corria veloz em busca do futuro. Não tinha namorada, barba falhada, um dente pivô, caríssimo. Guardava sempre um dinheirinho no bolso, que tem a ver com a história que narro, verá.
E depois aparece o Rato. O Rato era o apelido de um vizinho, andava lá por seus dezesseis anos. Caminhava ligeiro, parava, olhava para os lados, e ao final de cada diálogo dava uma cusparada gosmenta. Olhando para todos os lados, procurava alguma coisa que nunca enxergava. Era um rato, daí o apelido. Morava numa obra em construção, inacabada, junto com a família. Eram os zeladores do prédio fantasma. Então, por conseqüência, era a família Rato, mãe rato, etc, porque eram familiares do Rato. Aquele prédio demorou uns vinte anos para ser concluído, e ficou um edifício de luxo para aquela zona de trabalhadores. Graças, também, à família Rato.
Mas o episódio foi o seguinte: certa vez o Rato apareceu na Praçinha com uma bicicleta que tinha o nome de Tigrão, da Monark. E ela espantava a turma porque tinha um selim em forma de “ele”, confortável, garfo longo e retorcido, uma rodinha na frente e um rodão tala larga atrás. Os freios, com balacas agressivas, eram de última geração. Uma bicicleta cobiçadíssima, esportiva, radical. Todo piá sonhava em ter uma.
Meu irmão perguntou ao Rato se ele queria vendê-la, o que ele prontamente respondeu que sim. Dado o preço, meu irmão puxou as pelegas do bolso, separou-as e pagou o Rato na hora, sem hesitar, sem mais uma palavra ou barganha. O Rato olhou o dinheiro na mão estendida do mano, deu uma olhada fugidia para os lados, pegou o dinheiro, enfiou no bolso, olhou várias vezes para o lado direito e esquerdo da rua, deu uma cuspida e saiu a passou rápidos. Parava de vez em quando para dar mais uma olhada no território, e seguir adiante, desaparecer nalguma toca.
Meu irmão Pedro olhou com contentamento para a bicicleta, observou aspectos gerais do bem adquirido. Com a satisfação de quem conquistava alguma coisa muito importante, olhou para mim e disse:
- É tua. Cuida. E me entregou a bicicleta.
Confesso que foi o dia mais emocionante da minha vida, até então. Uma surpresa agradável, um coração disparado, amor. Nunca eu havia pensado na possibilidade de ter uma bicicleta que para nós era um artigo de luxo e só andávamos quando alguém nos emprestava. Aquele dia nunca me fugiu da memória e hoje conto esta pequena história em agradecimento a aquele irmão que meu deu uma pequena grande história a ser contada. A Bicicleta era preta, cabe apontar.
Quanto ao Rato, o reencontrei uns dez anos mais tarde, trabalhava como guarda vigilante num banco. Emprego bem adequado a aquela figura. E de uma coisa tenho quase certeza: aquela bicicleta jamais fora dele, e o dono verdadeiro nunca a encontrou novamente.

Em 2008

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O TRABALHO DÁ VIDA

O TRABALHO DÁ VIDA

Cidade de pouco mais de dez mil habitantes, dormia.
* * *

Entrou na garagem, desligou o barulhento motor. Os ponteiros do relógio de pulso marcavam três horas da madrugada. Mais uma vez não soube precisar se era cedo ou tarde. Compreendia que não havia hora para quem vivia a salvar vidas, era o seu trabalho.
Quase sempre era a mesma história nos plantões médicos. O telefone tocava a qualquer hora da noite, uma voz sussurrante e educada avisava que mais um paciente a esperava no hospital. Com urgência, sem urgência, não importava. Sabia que deveria largar o que estivesse fazendo – mesmo se fossem carícias – correr ao hospital e cumprir o papel que jurou desempenhar, na alegria e na tristeza, para os ricos e para os pobres.
Ainda sentada no banco do automóvel, pensava no paciente. Revia o menino descarnado que há pouco medicara: boca semi-aberta, olhos fechados, ossos à flor da pele. Acreditou um dia que a medicina deveria ser mais do que remediar semimortos como aquele menino. Junto à miséria, exercer a medicina era tarefa tão pesada e dolorosa como quebrar pedra o dia inteiro. Reviu dezenas, centenas de débeis meninos a pedir-lhe assistência, vida, comida, salvação naquela cidadezinha pobre do interior.
Maria, médica há quase dez anos, ainda não conseguira compreender a rotina da profissão que escolhera quando adolescente, cheia de ilusões e sonhos idealistas. Agora, relembrava o diálogo com a mãe do menino que há pouco medicara:
- A senhora não pode deixar de comprar os remédios, hein?.
- Mas doutora, eu não tenho dinheiro nem para comer, quem dirá para remédios!
- Peça emprestado, fale com alguém. A criança está doente, faminta. A fome mata. Por favor, lute pela vida do seu filho.
Desceu do carro. Pela porta dos fundos, entrou na casa. A imagem daquela desgraçada e desesperada mãe assombrava como um fantasma a sua mente. Na cozinha, abriu a geladeira e serviu-se de um copo de leite. Pensamentos de vida e morte, leite e fome, invadiram sua consciência. Sorveu lentamente o branco leite e reviu a monstruosa imagem do menino enfraquecido pela fome que o sugava. Sentiu-se culpada por estar bebendo o liquido lácteo. Apertou os olhos, retraiu os músculos para não chorar, para não fraquejar – médica que é médica não deve se deixar influenciar pelas emoções. Vazio, largou o copo sobre a pia e caminhou até o seu quarto. Encontrou o marido recostado na cama, o abajur ligado, o rosto sonolento, expressão de quem percebe a prostração da mulher mas que não consegue falar a frase exata de consolo. Mesmo assim, inicia:
- O que era, amor?
- Nada... Só o de sempre.
- Vem dormir, amor. Ta tudo bem com as crianças.
- Nosso filhos...
- Tudo bem. Vem dormir.
- Ah, amor. Sabe aquela menininha que atendi hoje à tarde? Aquela da família dos Schinker? Pois é, cheguei no hospital agora a pouco, para atender outro menino no mesmo estado, e fiquei sabendo que a guria não resistiu e morreu. A enfermeira disse que a mãe chegou com ela morta em seus braços, perguntado por mim. A enfermeira perguntou se ela havia comprado os remédios. A mãe disse que não, que não tinha nem para a comida. Aí, agora, fui ver outra criança, aquele menino dos Caligari, lá da Vila Colônia. Pois é, o menino estava quase morrendo também, desnutrido, faminto. Mediquei a pobre criança e pedi para que a mãe e o pai comprassem os remédios. E ela me disse, então, a mesma miserável frase que venho escutando há dez anos nesta maldita cidade interiorana, esquecida no mapa do Brasil: “Doutora, eu não tenho dinheiro nem para comer, como vou comprar remédio?”. Eu não suporto as... E os governantes...
Maria olhou fixamente para o marido, não se conteve e começou a chorar baixinho, bem baixinho. As crianças, no quarto ao lado, não podiam acordar.
- Calma, amor. Deita aqui.
Deitou-se na cama, enfiou a cabeça no travesseiro e soluçou até não poder mais respirar. Pensou nas crianças, nas mães, nos pequeninos caixões, centenas deles enterrados em vala comum, sem velas, sem nomes, sem fome, enfim. Iria mudar de profissão: balconista, secretária, florista. Chorava. Recebia o afago da mão do companheiro. Pensava na sua mãe, nas pobres e mais pobres mães que não podiam, não entendiam, não sabiam o porquê de tanta miséria. As mães que só tinham amor para dar, que queriam ser felizes, ser iguais as outras tantas mães, ternas e felizes.
Maria perguntou novamente ao marido sobre os filhos, e ele disse tudo bem, que tentasse dormir um pouco, acordaria melhor, mais forte, menos mãe e mais médica. Com nó na garganta, ela respondeu:
- Sim. Dormir e esquecer que a fome mata nossas meninas, meninos, velhos, todos. Todos famintos, de bocas abertas, sussurrando, baixinho, bem baixinho: comida.
Soluçando, Maria adormeceu. Sonhou com o menino esquelético: ele estava dentro de uma lata de lixo, esticava a mãozinha fina na direção dela, num último esforço de poder salvar-se, numa vontade de sobreviver, de ser, de pertencer e fazer parte deste mundo colorido dos cartões postais. E a mãozinha ia perdendo as forças, e Maria, com as mãos amordaçadas pelo próprio avental, não podia ajudá-lo, e o menino já não era mais menino, era uma menina, e a doutora queria pegá-la, levá-la para casa e dar a ela o leite branco, bonito, aquecido, gostoso, e o braçinho da menina entregou-se finalmente, e Maria quis gritar de pavor, chamar alguém, mas sua boca estava amordaçada e o seu grito sufocado, mudo, e então ela viu a mãe da criança se aproximar, e a doutora perguntou gesticulando com os olhos: “E os remédio?”. E os vermes do lixo já começavam a trabalhar, e Maria quis chutar a lata mas seus pés estavam amarrados com gazes, e ela olhava a mãe que dizia: “Não temos nem para comer, doutora.”, e os bichos, e a criança, e a mãe, todos entregues à fatalidade, sem forças para reagir, sem esperanças.
Maria acordou-se sobressaltada. O telefone insistia. Viu o marido atendê-lo:
- Alô? Sim, um minuto. Amor, é do hospital.
A enfermeira avisava que chegara mais um no plantão do hospital, que um adolescente se cortara com vidros de uma garrafa . A médica não hesitou. Antes de levantar-se, pensou que poderia ter escolhido outra profissão: balconista, florista, secretária. Deixaria para pensar nisso outra hora. Colocou uma nova calça branca, instintivamente. Notou que o dia também já ia acordar. Primavera: sabiás cantavam nas árvores floridas. Passou pelo quarto das crianças e ficou tranqüila com o sono tranqüilo dos filhos. Na cozinha, olhou o copo vazio que há pouca tomara leite. Saiu pela porta dos fundos, entrou no carro e ligou o barulhento motor. Saindo da garagem, o amanhecer mostrava-se lindo, a meia luz revelava belezas do novo dia.
Chegou ao hospital e viu o garoto que resmungava com alguns cortes nas pernas. Contando uma historia, a doutora costurava os talhos com precisão, fazia curativos e explicava à mãe que o rapaz não precisaria tomar remédio, que logo ficaria bom, que passasse dali a dois dias para trocar os curativos. Maria estranhou que o acidente tivesse ocorrido àquela hora. Cansada, nada perguntou.
Seis da manhã, fim do Plantão. Voltava para casa mais tranqüila. Por entre os lábios, tentava recordar alguma melodia, bem baixinho. Já no quintal de casa, exausta, constatou que ainda poderia dormir uma hora ao lado do marido, junto aos filhos. Assim o fez.
Quando o relógio despertou lá pelas sete da manhã, Maria não hesitou em pular da cama, tomar café, sentar-se na penteadeira, passar batom nos lábios finos, beijar a todos, entrar no carro e dirigir até o seu trabalho para uma nova jornada. Admirava as balconistas, florista, secretárias. Elas com certeza amavam seus trabalhos. Ser médica era sua profissão, sua vida. Jamais abriria mão disso, mesmo que a fome fosse a mais cruel doença dos meninos e meninas deste miserável mundo.


Em 2006

Para Mari, Rubens e filhos.

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...