quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O SORRISO DA SILVANA

O Sorriso da Silvana


Silvana estava maravilhosa. O colo enorme e branco explodia num bustiã preto, apertadíssimo. E ela sorria ao sol, abanando para conhecidos que passavam pela rua, a pé, de carro, de ônibus. Silvana colocava um sorriso mecânico maravilhoso a exposição, um sorrido programado, que ela ensaiava diariamente em frente ao espelho. Silvana estava maravilhosa e ainda tinha um carro lindo, preto, brilhante, maravilhoso. Aliás, arrisco, Silvana tinha tudo maravilhoso. Era maravilhosa e suas coisas também eram maravilhosas. Enfim.
Sei que não tem nada a ver, mas vai lá: seu pai morava distante, era madeireiro do estado de Goiás, desmatava tanto que até os passarinhos o olhavam com pesar. Mas Silvana nem ligava para isso, nada passava na cabecinha de Silvana. Como era do Sul, falava com o pai pelo telefone, de quinze em quinze dias, conversa fiada, cada um pedia alguma coisa, a seu modo. Silvana não tinha culpa da sua falta de interesse nas coisas.
Sua mãe morava no norte, apaixonara-se por um jangadeiro do Ceará, mas isso também é encher morcilha, nada contribui ao fato.
O que importa é que Silvana não tinha culpa de ser bela, de estar feliz, ali, naquele momento, abanando, miss simpatia da Rua A, gleba B. Acontece que a vida apronta cada uma que vou te dizer... Tinha uma pocinha de chuva perto de Silvana, junto ao meio fio da calçada. E lá passava aquele feioso caminhão de mudanças, lotado. Meu carro era velho, eu vinha atrás. Silvana ainda ostentava o sorriso. Poff! Coitadinha da Silvana, bem entre o colo do peito e o rosto, no pescoço, em cheio, barro brabo, acho que fedorento. Nada pude fazer, puro acaso. E saí pisando o motor 1500 do meu fusquinha 1972, devagarzinho.
Coitadinha da Silvana.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

PRIMEIRA PESCARIA

Primeira Pescaria

O tio disse: vamos lá? E não demorei muito a me arrumar. Não poderia esquecer os tênis, afinal o açude estaria repleto de jacarés, traíras com dentes enormes, sapos cheios de verrugas. Ou seriam troncos de galhos, de maricás, presos no fundo da água barrenta? Bem, não importa. Desta vez eu enfrentaria tudo, e faria o arrastão com a rede, na medida ideal. Eu, dez anos, já estava na hora de me orgulhar de um peixe à minha altura. E o carro rodou estadas de chão batido, passou por cercas de arames farpados, porteiras danadas de ruim de fechar, touros enfurecidos. No trajeto fomos quietos, o silêncio é o segredo de um bom pescador. Chegamos. O açude estava quieto, parece que esperando a nossa chegada. Mudo, o tio esticou a rede, e com um lançar de sobrancelhas indicou a ponta que eu devia arrastar. E não foi muito, nem com muito esforço, que a rede passou, e o tio logo disse: fecha, Joãozinho! Fecha! E foi com espanto que, já na grama, sete peixes enormes, com bocas imensas, agitavam-se na tentativa da fuga. Cada peixe tinha o peso de um cusco médio, dos engrossados. Valente, peguei um por um, e os levei para a sombra da figueira centenária. Observei a perna que sangrava um pouco: talvez um mordiscar de filhotinho, jacaré baio, coisa pouca. Tinha sido a pescaria da minha vida, a primeira que eu guardei na memória. Do tio, tenho a lembrança da glória e da felicidade que sentiu. De mim, o orgulho que até hoje guardo.

Para João Eduardo e Rubens Bins, sobrinho e cunhado.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

PESADELO




Pesadelo


Foi um pesadelo.
Minha vida com ela já não era mais a mesma. Não havia amor, só uma convivência implicante. Não éramos mais felizes e nos aturávamos mutuamente. Era dolorosa aquela situação, eu não a suportava mais, mesmo assim repartíamos o pão nosso de cada dia, e nossas misérias também.
Acontece que ainda éramos lindos, um e outro. A beleza dela, de alguma forma, me contagiava, me atingia e eu nutria algum sentimento profundo que não podia esquecer, controlar. Isso nos mantinha, acho. Foi quando aconteceu mais um drama na nossa pequena tragédia.
Um jovem rapaz, gordo, alto e confiante da sua arrogância, veio entregar agendas na nossa casa. No escritório, ela recebeu as agendas que nem bem eu sabia para quê tantas. O rapaz pediu que ela lhe devolvesse a agenda antiga. Nesse exato momento eu disse que não podíamos entregá-la uma vez que haviam muitas coisas escritas nela, nosso passado. O rapaz impetuoso disse “não quero nem saber”, que queria já. No momento em que ela esticou o braço para alcançar a agenda, eu gritei que não a desse. Os dois se entreolharam. Desconfiei na hora que existia algo secreto entre os dois.
A agenda não foi entregue ao garoto. Fiquei no escritório enquanto ela o acompanhava até a porta, presumi. Pouco depois saí do escritório e passando pelo corredor os surpreendi saindo do quarto de hóspedes. Ele com uma cara de satisfeito e muito suado, principalmente no rosto, vermelho; ela também satisfeita, descabelada, mas preocupada por humilhar-me mais uma vez.
Minha casa caiu mais um pouco e eu me senti abatido, como um boi enlaçado a espera da castração. Ela ainda me contou que havia mais dois ou três amantes além do rapaz gordo e debochado. O garoto satisfazia-se como um animal naquela que um dia tanto amei.
Daí para frente, tudo mais foi tristezas e incertezas, somas de erros, pecados, lágrimas. Minha estrada tinha chegado no fim da linha, luz não tinha a minha frente.
Foi apenas um triste castigo. Um pesadelo.
Em 23.06.2009

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

PRIMEIRA SÉRIE

Primeira Série


O meu pai sempre esteve ao meu lado. Lembro-me de quando eu era criança, não sei a idade que tinha, meu pai era o meu herói. Mentira. Meu pai sempre foi uma grande mentira. Meu pai foi as minhas lágrimas na carteira do colégio:
- Alberto, em que teu pai trabalha?
Quem era aquela professora horrível que vinha fazer uma pergunta dessas a um menino em frequente estado de constipação, aluno da primeira série de colégio estadual? Era uma bruxa. Ela era malvada por fazer perguntas capciosas num momento em que eu só pensava em desenhar o meu nome na classe e mostrá-lo ao colega ao lado.
- Alberto! Fiz-lhe um pergunta.
O que ela queria que eu respondesse? Queria que eu dissesse que ele era psicólogo? Queria que eu dissesse que meu pai sempre esteve ao meu lado, aconselhando-me, ajudando nas difíceis lições das primeiras letras? A, abelha; B, bola. C, cebola. Queria que eu dissesse que ele até me ajudava a pintar o desenho? Que ele havia comprado um lindo carrinho no centro da cidade no dia da criança e que me dera com um amável sorriso no rosto? E que ainda dissera: tu merece, filhinho.
- Alberto? Estás surdo, Alberto. Alberto?
Eu tinha sete anos de idade e mais adiante aquela professora iria colocar no boletim: reprovado. E aquela reprovação marcaria todo a minha vida escolar: eu nunca mais seria reprovado. Aprender tornar-se-ia um tormento, cada prova seria uma batalha. Estava fadado a ser aluno-problema por toda a minha existência estudantil.
- Alberto! O que o seu pai faz na vida?
Eu queria apenas pintar o meu nome na classe. Eu já sabia escrever, com certa perfeição, meu nome: Alberto. Eu havia treinado mil vezes este belo nome. Queria colocá-lo na classe e impressionar o colega ao lado. Mas meu coleguinha nem dava bola, e a professora queria saber em que meu pai trabalhava.
- Ele é mecânico.
Eu não sabia ao certo se meu pai era mecânico. Eu sabia pouco sobre o meu pai. Sabia que falar dele ou nele era problema na certa. Tabu. Eu poderia ter inventado mil histórias à professora, sempre fui metido a contar histórias, um Joãozinho. Mas a professora não merecia minhas mentiras, eu precisaria delas mais tarde, por que gastá-las na inocente infância?
A professora poderia ter perguntado sobre a minha mãe. Ai então eu responderia:
- A minha mãe também não ocupou um grande espaço na minha infância. Verdade. Lembro-me dela altas horas da noite, alinhavando um vestido para uma dona de boutique: que tinha os cabelos pintados, que todos os meses viajava para a grande metrópole comprar os últimos lançamentos da moda, que pagava uma miséria para minha mãe.
A professora não insistiu mais na pergunta. Uma bruxa! Eu terminei de desenhar o meu nome na classe. Mais tarde, já com barbas na cara, vim a conhecer melhor meu pai. Triste. Era uma pessoa triste. Minha mãe alinhavando para dar sustento a um bando de meninos constantemente constipados. Meu pai triste, sem saber por que veio.

Em 2008

terça-feira, 13 de outubro de 2009

CONTOS CURTOS

Chovia

Outro dia eu estava no ônibus, sentado lá do banco de trás. Chovia bastante na minha aldeia. De repente senti a freada do carro, imaginei o pé do motorista pisando firme no pedal e cerrando os olhos numa expressão de terror. Imaginei que uma criancinha, olhos azuis, em busca da bola, atravessava inocentemente a rua. Mas parte era invenção. Eu estava lá no bando de trás, na cozinha, não vi nada, nada, nada, além da freada, que nem brusca foi. Mas tudo isso passou no meu pensamento, nessa cabecinha rala. Eu estava apreensivo com várias outras coisas: perdi as eleições, tive que assinar um ara, o povo da minha aldeia andava mal das pernas, como sempre. E então eu tive estes pensamentos, e penso que a gente pensa muita porcaria quando se está preocupado com coisas, coisaradas. He, vida.

em 10.12.2009

Chuva


Hoje chove muito na minha cidade, chovem pensamentos na minha cabeça. Não sei por que chove tanto... Seria para agitar o córrego calmo que tenho dentro de mim? Essas coisinhas que tenho aqui dentro, que acontecem na cidade, naquilo que vejo. E, também, na cabeça daquele homem que caminha sem rumo, trôpego, que avisto da minha janela. Viste lá? Ele vai caminhando na chuva, atravessando o parque, sem guarda-chuva. Chove na sua cabeça: ele está pensando no seu sapato furado, no seu papo danado e, talvez, no filho que deixou de ser amado. Pela sua ignorância, pela aridez da cabeça que recebe água da chuva e não rega nada.

em 10.12.2009

O Contador

Velho, de aparência abatida, barba por fazer, entra no ônibus de linha.
Senta-se no banco no meio do coletivo, do lado do corredor. Suspira.
Da pasta preta, de couro surrado, gasta nas pontas e sem brilho de tanto uso, velha, tira o caderno de capa amarela e a caneta quebrada e sem tampa, azul.
Dali não sai mais.
Desenha números e mais números, numa conta enorme, com algarismos que se confundem e não se encaixam, uma cobra soltando escamas.
Passaria o resta da vida naquele mundo se o ônibus não chegasse no fim da linha e se o cobrador, olhos caídos, não lhe avisasse que a estrada chegava ao fim.

Em 13.02.2008.

Gente

Meu pai tonteia pelas ruas da cidade.
Mais precisamente pelo centro, que é movimentado e interessante.
Meu pai parece um passarinho assustado, curioso.
Afora a vergonha, vai julgando o rosto, o jeito daqueles que passam.
Chega, meu pai, a conclusões tristes.
Lembra uma frase: “que futuro tem esta gente”?
Nada ou pouco pode fazer
Meu pai só pode observar.
Que futuro tem meu pai?
Em 13.10.2009


Reunião dançante

Entro de leve.
Um quarto quase escuro, alguém improvisou uma média luz, fuleira.
Música romântica, americana, melosa, no toca-discos.
Adolescente, - como eu queria dançar com uma delas.
Mas estão todas ocupadas.
Impossível, penso.
Cabelinho seboso, caído, liso, nos olhos. E saio.
Eu estava de penetra, é justo.
Até hoje sonho com aquela festinha.
Minha idéia de reunião dançante.
Em 21.09.209


Saco

Arrasta o saco
Cheio de papéis dos banheiros.
O movimento do seu corpo é de condenada.
Dá dó. Ou não.
Depende de quem olha.
Tem olhos para tudo neste mundo,
Tem gente para tudo e
Tem tudo para a gente.
Arrasta o saco preto, sujo
De um quarto de banho para o outro, diria meu tio mais velho.
Banheiro de gente fina.
E
Não vê a hora de tudo acabar,
Voltar para casa,
Limpar o seu próprio banheiro e xingar todo mundo pela imundície deixada.
Em 17.09.2009


Chapista

Quererá adivinhar:
Este carne.
Este frango.
Este frango, carne e coração. Quiçá uma fatia de queijo em cima.
Esta nada, de regime, assaltou a geladeira ontem à noite.
Este magro por que um miserável, não paga muito pelo peso do prato.
Quererá filosofar:
Que vida,
Que espátula,
Que cheiro repugnante!
Ainda muda de vida e diz tchau à fumaça e banha.
Mas lá vem o dono da chapa...
Em 16.09.2009


Árvores

Se eu pudesse
Beijaria todas as mãos
Que plantaram estas árvores
Floridas da minha cidade.
E beijava quem as mandou plantar.
E quem as plantou.
Que cores!
Que espetáculo!
Que vida!
Meus olhos se achem de alegria nestas avenidas movimentadas e encantadas pela beleza destas árvores. Cada árvore me acena, me deixa passar, me impulsiona. Se eu pudesse Beijaria A mão de Deus E agradecia profundamente esta esperança que deposito nos homens Plantadores.

poeminha dedicado a meu irmão Roberto Branchi.


Chuva

João Antunes era morador de Bexiga
Localidade do Interior de Rio Pardo, aqui no Rio Grande.
Morava solito, numa tapera, perto dum açude.
João Antunes foi encontrado morto em frente ao casebre, numa árvore, bem enforcado, corda grossa.
No bolso do defunto, um bilhetinho com letras garrafais:
Isolda Berta, eu te amo.
A guarda conclui que o suicídio fora passional.
Mentira: o matungo se enforcara porque a chuva não deu trégua por cinco dias, inundando as esperanças de sol do gaudério.
Em 11.09.2009


Mãe

Quando ela ficava doente
A gente adoecia de fome.
Quem ia fazer nossa comida?
As manas não cozinhavam nada.
Mas mesmo debaixo das cobertas
Sentindo as piores coisas
Ela ia- nos ensinando a fazer o feijãozinho.

Em 25.05.2009


Morte

Sentei na beira da calçada,
O paralelepípedo estava gelado.
Mamãe já havia partido,
Meu irmão acabara de partir, no mesmo trem que agora fazia nova viagem, mesmo destino.
Lágrimas eu tinha pouco,
Mas minha cabecinha sentenciava: havia tantas coisas para serem conversadas. O embarque fora rápido demais.

Em 19.05.2009


Velho

Senta ao meu lado e conta histórias.
Todos os dias.
Às vezes as repete. É a idade, o tempo.
Será que as conta para não esquecê-las?
Volta e meia, reclamo...
Reclamo por reclamar porque já não posso viver sem elas.


Velho

Suas mãos calejadas vão desenhando arcos e curva de ferro.
Vão edificando meu projeto.
Explica-me a forma, o estilo, o modo.
Conta-me histórias para dar veracidade ao trabalho executado.
É frio o tempo.
É alguém que me conta o que a vida lhe ensinou.
E eu vou aprendendo.


Mãe

Com vinte e cinco anos minha mãe curvou-se pela primeira vez.
Baixou a cabeça e olhou para o chão, em busca de uma moeda, que fosse.
Dez anos passados, a mulher estava encurvada de forma tal que não havia como endireitar a carcaça.
Viveu feliz assim, por longos anos.
Criou-nos.
Nunca achou moeda alguma.

Em 14.05.2009

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...