quarta-feira, 31 de março de 2010

DE QUANDO A MINHA MÃE MORREU - livro de contos


DE QUANDO A MINHA MÃE MORREU

Noite 1

O cão latia ferozmente junto ao portão enferrujado. A minha porta estava fechada, as visitas partiram.
Apaguei as luzes da casa, me escondi na escuridão da sala.
Pensei numa saída, numa reza, na minha mãe. Não podia chorar, eles me descobririam com facilidade.
Depois de toda a maldade que fiz, só me restava a sorte de não ser encontrado. Eu estava só: não havia companheiros. Eu estava só.
O cão tem mil dentes na boca ácida, e não para um instante, não dá sossego a minha consciência, não me deixa avaliar, medir, pesar. Eu estou tonto com as minhas ideias vazias.
Vou tomar mais um gole e dormir, talvez o cachorro desista e descanse um pouco, também.

Em 25.10.2004

Noite 2

Estendi a mão pálida para ver se ainda chovia, ou se a chuva ia chegar. Não pude olhar o céu, mas sabia que escuro estava e que as estrela pertenciam aos românticos daquela noite.
No negrume, no escuro, no breu, no preto, olhos ainda mais escuros observavam meus últimos movimentos antes da cama espinhosa. Antes fosse um bicho, um urubu a me olhar. Não era. Era gente. Gente negra, um menino virado em olhos. Não pude identificar o que queria. Eu estava cansado, havia sido um dia duro, penoso, sem pássaros, sem carrosséis, pipoca doce.
Olhos de um menino preto, antigo, antepassado, me olhando. Fechei a janela, ele os olhos. Sinto-me culpado por alguma coisa, mas não enxergo claramente. Vou dormir.

Em 26.10.2004

Noite 3

Ouviu sua própria voz chamar. Era uma voz cansada, baixa, pouco exigente. Se tudo tivesse terminado igual a esses jogos de encaixar, ele não precisaria berrar tanto, dizer repetidamente as mesmas palavras. Soletrá-las bem alto. Tentar imprimir uma verdade que nem ele reconhecia como certa.
Não fora o momento de fraquejar. A àquela hora da noite não poderia mais haver recusas, falsidades. Era preciso dizer repetidamente sim. E enquanto ela não cansasse, dissesse chega!, ele continuaria repetindo a mesma reza.
E agora, quando algumas luzes se apagaram, essa sua voz vem cobrar-lhe o ônus da intolerância, da estupidez. A Noite vai ser longa e infinita.

Em 11.2004

Noite 4

A tarde vinha caindo, quase noite. Eu e ela. Corremos para dentro da casa verde. Conosco, uma revoada de gafanhotos famintos, solenes.
A hora era o nosso momento de felicidade. Que íamos para a cama de lençóis de seda, que penetrávamos nossas carnes, que nossas bocas se juntavam sofregamente.
Mas os gafanhotos eram enormes e em número considerável. Milhares. Pegamos baldes, pás, vassouras. Colocamos música clássica. Iniciamos o trabalho de coleta enquanto a noite adentrava.
Sem amor, fomos vencidos pelos bichos verdes. Cansados e tristes, saímos da casa. E eles continuaram a comer os tapetes, colcha de retalhos, cetim, amor, num trabalho alegre, saboroso e satisfeito.

Em 11.2004

Noite 5

O vento entrou rasteiro pela soleira da porta azul, carcomida. Novembro. Corri para a sala de jantar onde pratos imundos decoravam um ambiente sombrio.
A luz havia se apagado há muito tempo. A vó dormitava no quarto; o vô, no cemitério. De ouvido eu lia o vento que contava coisas antigas, mofas, sem graça nenhuma. Eu não tinha um só irmão para conversar naquele momento. Explicar o que estava acontecendo, e por que o vento insistia tanto.
Noutros tempos eu pediria para arrumarem a fresta da porta, hoje em dia não. Primeiro vieram os ratos, agora aquele vento que me perseguia até a sala de jantar, imunda.
Seria um mês ventoso, e enquanto os avós dormiam cada um no seu canto, eu agüentaria com firmeza o inoportuno daquela noite.

Em 02.11.2004

Noite 6

Corri em direção da casa, entrei. Fechei a porta com precisão japonesa. Verifiquei o esquadro com o olho esquerdo. Fazia-se necessário chamar Alberto para dar uma solução na simetria das duas paralelas verticais, tendo como referência o vidro jateado do centro.
Esqueci tudo. Não havia chegado contas nem outras correspondências. Era preciso entrar em contato com alguém, mostrar que ainda tinha vida no meu coração. Que tudo não passava de uma fatalidade, que cortei ou cortaram as fatias do queijo e que a distribuição foi injusta entre os presentes.
Mesmo Alberto não viria, sei...Não existiam mais móveis na casa, só uma única porta de ferro a me encarcerar no mundo que criei.

Em 11.2004

Noite 7

A família transitava sem cerimônia por todas as lacunas da edificação. Eu e meus amigos colocamos cartazes pelos cômodos secundários da casa. Os cartazes diziam que era proibido circular sem a minha autorização. Grifo, redundante: as letras eram garrafais. Tudo indicava que a minha autoridade e estima estavam em baixa, mesmo.
Era preciso chamar o exército do Haiti. Estabelecer a paz na propriedade. Os parentes esbarravam na minha personalidade, e só não me diziam coisas inapropriadas porque eu mantinha o meu semblante igual ao do meu bisavô recalcado. Dele eu tinha um retrato na parede.
Procurei um apito dentro das cânforas indígenas, encontrei apenas um escapulário feito de aros de prata. Nem rezar os afugentaria. Um líder da família um dia me disse: isso aqui também nos pertence, use autoridade!
Impossível conviver com tudo isso. Melhor reabrir os porões e ver o que há por dentro.

Em 15.11.2004

Noite 8

Entrou com as botas embarradas. Havia chovido muito naquela madrugada. Enlameado estava o caminho que leva a casa. De um barro argiloso, daqueles que grudam e não há água que os limpe. Tenho entre os dedos a palavra “soturno”, não sei onde usá-la.
Vendo ela sujar o chão polido, o qual eu havia trabalhado o dia inteiro, continuei calado. Suas botas de salto e cano alto, couro grosso, pretas, embarradas, imundas, andadoras de caminhos promíscuos e escusos, me provocaram arrepios de medo. E ainda havia a vergonha estampada no meu rosto esquálido. Noutros tempos eu poderia reivindicar, usar palavras baixo calão, implorar. Agora só me restava o silêncio, o conformismo. Eu estava usado e acabado; ela, forte e impotente com suas botas pretas de fivela niquelada. O resto era uma mulher maravilhosa, linda, dentro das botas.
Assim que a sua presença e perfume passaram pelo corredor em direção ao quarto de banho, sujando a mim profundamente, fui à dispensa buscar água, pano e sabão para limpar a minha desgraça.

Em 17.11.2004

Noite 9

Ferido com o golpe quase mortal da lança, arrastei-me até o quarto. O sangue cor de vinho reavivava as cores do assoalho.
Antes disso, pura curiosidade, abri a janela da sala. O barulho de mato mexido me chamou a atenção. Há tempo que eu fora avisado pelas “vozes noturnas”: “não abra a janela”.
Bastou um segundo de desatenção. Mal deu tempo de iluminar o quintal com o candeeiro. A flechada foi direta, no peito, exata, ancestral.
Eu estava pagando por coisas que outros fizeram, eu tinha certeza que a culpa não era minha. De qualquer forma, a casa estava toda fechada... Foi desatenção. A vingança veio mais rápida do que imaginei.
Agora só uma efusão de ervas me aliviaria da dor, mas eles estavam lá fora, dançando a minha dor. Naquela noite, certamente, não me ajudariam.

Em 11.2004

Noite 10

As ferramentas estavam a minha disposição, todas novas. O facão eu guardaria para uma emergência, um ato definitivo e impensável. E neste caso poderiam me acusar de qualquer crime. Mas só se eu usasse o facão e é por isso que eu o esconderia, por cautela.
Talvez o início do trabalho se daria pelo teto, depois pelas paredes caiadas e por último pelo assoalho embranquecido, gasto. Não sei, não tinha me decidido ainda. O modo como faria o trabalho fazia sentido, de baixo para cima. As ferramentas estavam ali, a minha disposição. O alerta familiar já havia soado: “tudo sob tua responsabilidade”.
A casa era centenária. Mas isso pouco me importava. O que ela trazia e me atormentava eram os poemas escritos a carvão nas paredes, eram as histórias assobiadas pelas frestas das janelas, as lendas sussurradas pela máquina moderna em funcionamento. A máquina destoava de tudo.
Por isso tudo, por mim, pelo que tenho por dentro, é que era preciso usar as ferramentas novas e maquiar a casa, iniciando à noite, na companhia dos fantasmas. E o facão só seria usado para enfrentá-los num último momento.

Em 19.11.2004

Noite 11

Fechei a porta do quarto com cautela, zelo, medo. Não havia a menor possibilidade da porta ranger: nem um barulho, nada, óleo nas ferragens. Virei-me em direção a sala, um copo de água, na cozinha, para tirar o amargo da goela, ou ajudar a descer o soluço preso, engasgado.
Nem meio passo em direção a sala, escuto um gemido fraco, mas penetrante. Dizer que não escutei não posso, era a minha obrigação estar atento a tudo. Mais um passo, mais um gemido. Que dor, as nossas! Ela não me perdoava, não me deixava descansar, nem um minuto. Aqueles ais repetidos acusavam-me eternamente.
Ai, ai, ai...Mesmo assim fui à cozinha. Os ais cada vez mais acusadores. Tomei o copo de água, voltei correndo ao quarto do outro enfermo. A vigília seria longa naquela noite.

Em 23.11.2004

Noite 12, Casa

Pela porta dos fundos adentrei na casa. Meti o pé com força na madeira, afinal aquilo estava emperrado há anos, desde o dia em que ela partiu. Móveis não havia, e se vestígios existiam, a princípio, não os vi. A pena pingava ainda da mesma forma de antes. A pena, que falo, era na cozinha, o lugar da casa onde falei as coisas mais importantes da minha vida.
Da sala constava apenas o eco do meu suspiro e ainda o barulho do vaso de margaridas que um dia ela deixou cair, espatifando ainda mais o nosso coração, que era um só, um dia.
No resto da casa não havia nada. Antes de sair, olhei para a porta da frente e enxerguei o bilhete que de pronto li: “Tranque a porta, querido. Te vejo mais tarde, beijo de quem te ama”.
E depois, nunca mais.

Em 02.03.2005

Noite 13, Casa

Pegou a vassoura e varreu todo o lixo para a rua. Eu havia dito, tenho certeza disso!, que não fizesse aquilo, que cuidasse mais com as recordações.
É verdade que a casa estava imunda, mas aquilo era coisa de século, culpa do tempo e dos meus insanos antepassados. Aquilo tudo era história, ela não podia fazer a varredura sem a autorização necessária.
E, ainda, não satisfeita com tamanha loucura, ateou fogo em tudo, no quintal, enquanto eu gritava desesperadamente pela janela, preso. Malévola: ela sabia da minha servidão junto a casa, se não fosse isso a estrangularia com minhas mãos imundas.
A casa ficou limpa, é verdade. Mas do que adiantava aquele brilho se a cabeça ainda doía de tanta desgraça.

Em 04.03.2005

A casa, 14

Chegou com um estandarte enorme à porta da nossa casa e exigiu que deixássemos a propriedade imediatamente. Que aquilo tudo, por lei, lhe pertencia, era sentença garantida, transitada e aprovada na mais alta Corte da Nação.
Mas os meus argumentos ainda estavam na garganta e eu debatia com aquele senhor mesmo tendo os meninos a choramingarem de fome às minhas pernas.
E o doutor não queria nem saber, era causa ganha, que caíssemos fora de uma vez ou ele usaria da brutalidade da lei e nos expulsaria a força.
O choro das crianças já estava insuportável, então pedi educadamente que aquele senhor voltasse mais tarde com a sua bandeira. Fechei a porta abruptamente na sua cara vermelha e pude escutar, por muito tempo, seu suspiro de indignação do outro lado.

Em 07.03.2005 – aniversário de Rodrigo Branchi

A casa, 14 b

Perguntei insistentemente porque tanta coisa. A casa já estava lotada de bombachas, facões, cuias de chimarrão, laços, chapéus. E agora ela vinha com aquele monte de batons, sombras, pentes e sandálias.
Ali sempre fora um lugar de macho, mulher na cozinha ou no tanque. E eu e os meninos na sala, vendo no aparelho de imagens, cuspindo no chão. Bem que a piazada queria ir ao encontro dela, correr para baixo da saia e me deixar. Mas o que é isso! É desde pequeno que se ensina quem é que reina nesta vida!
E agora ela vem com essas novidades que me deixam aborrecido. Vou jogar os cachorros em cima dela! Vou dar uma sova nessa coisinha que teima em se apropriar do meu espaço. Ah, vou. Tranco no quarto e compro comida pronta no bar da dona Maria.

08.03.2005 – Dia da Mulher

A Casa, 15

Mal eu havia acordado, os olhos ainda inchados, depois de uma noite mal dormida. Mal havia dado os primeiros passos até a suíte, enxaguado o rosto, cuspido. Mal havia pensado no café com pão, ricota e requeijão, e depois jornal, informação. Mal havia iniciado o maldito dia que prometia um sol abrasador. Mal tudo isso e mais outras banalidades e eu ouvi os passos do cavalo no paralelepípedo da rua em frente da minha casa.
Aí espiei pela fresta da janela e vi aquelas malditas crianças a recolher lixos que a casa produzia. Famintos pela sujeira que eu não quis, que eu não dei a mínima. E eles ali, com o seu pangaré cansado, esfomeado, faminto seu igual, a recolher aqueles restos e a acabar com suas infâncias, e, também, com o meu dia.

Dia 15.03.2005 – dia chuvoso depois da seca.

A Casa, 16

Eu estava vencendo, já há algum tempo, a luta contra os bichos voantes no caquizeiro. A fruta amarelava um pouco e lá ia eu com meu gancho gigante a puxá-la.
Os bichos estavam loucos, e me esperavam em cima do muro, todas as tardes. E eu não estava nem aí, aquela árvore me pertencia e tudo que desse nela era meu. Eles que morressem de fome, que se extinguissem de uma vez por todas e não me incomodassem mais.
Um dia, na hora da sesta, ouvi no forro aquela gritaria incrível. Eram ratos enormes que vasculhavam toda a memória do telhado. A luta ia longe, ainda pensei antes de voltar à árvore e retirar os frutos ainda verdes, antes dos pássaros famintos.

Em 22.03.2005

A Casa, 17

Entrou apavorada e apavorando todo mundo. Estávamos confortavelmente sentados no sofá da sala, olhando o noticioso matinal à procura de uma desgraça qualquer, uma que nos saciasse logo cedo. E ela, com os seus cabelos desgrenhados, que não havia como arrumar de tão horrorosos que estavam, adentrou no nosso sossegado lar dizendo que não queria mais nada a não ser morrer e mandar todo mundo para o inferno.
E nós ali, olhos esbugalhados, tomando o nosso cafezinho especial, característico, de primeira, e ela com a sua expressão perdedora, derrotada.
E antes que ela passasse o dia inteiro nos incomodando com suas picuinhas, mandei ela fechar a matraca. Que se desse o diabo do respeito, e que nos deixasse acomodadinhos no nosso sofazinho vermelho.

Em 24.03.2005 chuva fina

A Casa, 18

A casa estava caindo aos pedaços. As pessoas, os ditos amigos, diziam que era hora de colocá-la a baixo, acabar com o bando de cupins que tudo devoravam. Eu estava muito cansado daquilo. Tanto cupim me fazia um mal danado. Eu não aguentava escutá-los, eles com suas pronúncias corretas, adequadas e bem apropriadas. O mundo estava em destruição. O maligno vencia com facilidades o benigno, e eles ali, na minha orelha poluída, imunda, jogando mais porcaria para dentro. Que deixassem a casa ruir, que ela também fosse vencida, ora! Passei anos a fio tentando varrer a sujeira para debaixo do tapete e tudo fora inútil, alguém sempre denunciara.
Depois que desabasse, quem sabe, eu poderia, então, desfrutar do olhar de perdedor que almeja vingança ou aposentadoria.

Em 31.03.2005

A Casa, 19

Pediu licença e saiu da casa. Deixou alguns vestígios pelas peças. Com certeza queria ser lembrada de alguma forma. Eu, por mim, por meu coração e pelo meu jeito malvado de ser, dei de ombros e fui ver as formigas que passavam na pia de inox, inoxidável. Maravilha.
Que fosse mesmo e que fosse de verdade, para sempre. Já havia anunciado a sua partida há tempos. É claro que eu ficava mudo, sem opiniões, a decisão fora dela, e a vida também. Chega um tempo que a gente diz que ama, mas ama ova nenhuma. É pura aparência, acomodação. E que fosse e que não esquecesse dos duzentos e oitenta e três bilhetes de amor que eu deixei pendurado na geladeira fria da discórdia, da intolerância, dos rancores.
Aquele amor era finito, deixaria pouco mais que um assoalho gasto. A casa agora era a minha prisão.

Em 05.04.2005

A Casa, 20

Antes de bater a porta na minha cara, disse-me que era impossível compartilharmos o mesmo sabonete, a mesma pasta de dentes, as mesmas dores lombares, os mesmos pecados da infância, os momentos em que nos faltaram com afeto, e que ficamos num canto, chorosos, tristes, vendo as enormes pernas dos adultos passarem, em outra casa, indiferentes a nossa presença.
Pela portinhola pude ver ela sair pelo portão. Miserável: nem uma última olhadinha de compaixão, de pena que fosse.
Foi-se rua de paralelepípedo afora. Penso: fico com a casa, com a história, com as crianças que corriam cá e agora cresceram e se foram lá.
Não vou desistir. Entro na cozinha, coloco a água para o mate. Tenho as violetas que ela esqueceu de quebrar. Pela janela vejo a horta, e isso me basta, por enquanto.

Em 27.04.2005

A Casa, 21

A bola rolando no corredor, os meus olhos atentos buscando os movimentos frenéticos. As crianças, com suas canelas finas, brancas, com chutes fracos, faziam a pelota percorrer os caminhos da casa.
E olhando a bola, que rola e me olha, atento, feliz que estamos alegres. O seu movimento faz tudo ter um sentido mais amplo e objetivo para a existência. Felicidade que te faz sentir existente e te marejam os olhos.
E aqueles chutes débeis, divertidos, direcionais à bola pelos caminhos passados em que passei: infância. Não preciso de mais nada, a não ser o movimento alegre e feliz da bola. O tempo felizmente voltou para mim.
E quando, cansados, os jogadores vêem ao meu encontro, eu só quero abraçá-los e beijá-los. Agradecer pelo que acabaram de me dar: felicidade, vida, gol.

Em 04.05.2005

A Casa, 22

Era um dia especial, mas estava fora da casa. E eu, preso ainda lá dentro, só podia olhar o sol maravilhoso da manhã. Um galo atrapalhado cantava, o diabo! Eu sentia o cantar do bichano como uma gozação do infeliz.
Dentro da casa tudo era condenação. Os móveis me diziam: viu! Tiveste o tempo necessário para acariciá-la, consolá-la, amá-la. Mas só agora percebes que não fizeste isso a tempo. Bem feito, ingrato!
Cruzei as mãos às costas, baixei os olhos e a cabeça. Ah, se eu tivesse lágrimas...O dia era especial, de lembranças daquele rosto infinitamente dócil e amável.
O dia era especial. Só os meus dignos pensamentos se salvaram, acho. Colhi aquilo que plantei e agora lamento o que tenho nas mãos!

Em 05.05.05 – cinco estrelas

A Casa, 23

Ando de um lado para o outro da casa. Penso numa saída digna, elegante. Os olhos me observam e estão por todos os cômodos. E eu não sei mais o que dizer, e parece que todos lêem meus pensamentos.
Houve um dia, numa manhã de sol, que apareceu uma oportunidade de redenção. Era o sol da manhã, e clara era a oportunidade. Eu sabia que a um passo estava a minha felicidade, a minha glória.
E foi naquela manhã que eu a perdi. Fiquei quieto, medroso, observando a luz do sol dirigir-se para outra casa da vizinhança.
Agora ando de um lado para o outro, procurando o que dizer antes da luz artificial apagar-se. E a plateia, a espera, me olha com olhos enormes que não tenho coragem de encara.

Em 13.05.2005

A Casa, 24

Os músculos cansados, atirados e impotentes, descansando nas rugas amarguradas do meu rosto...(que frase bem composta, leia novamente, perdeste algo, é certo).
Tive medo de confessar a ela e a todos que por ventura entrassem na casa, do meu desânimo de encarar o mundo, de ter esperança de combatê-lo, de duelar contra esta condição miseravelmente humana, contra a imposição de tudo o que não está certo. Calamidades.
Vi aquele rio em fúria depois da tormenta, e o vento violento de um tufão a levar pelo barro ou pelos céus, tristes e indefesas, as crianças meigas e ingenuamente humanas. Meus músculos doíam e minhas costas não podiam suportar a dor de uma cruz dura e pesada.
A casa estava gelada, e ainda senti suas mãos a roçar-me os cabelos como um consolo. Ela não podia entender minha dor. E então eu chorava baixinho, escondido do mundo vencedor e cruel.
O inverno chegaria triste naquele ano.

Em 23.05.2005

A Casa, 25

O povo lá fora exigia a minha saída da casa. Organizaram uma manifestação contra a minha permanência. Para eles, a situação era insuportável. Não iam manter no poder um covarde que nem eu. Sempre de pijamas e pantufas, a verdade é que eu tinha pouca força para solucionar os conflitos mais óbvios.
Achei aquela manifestação um tanto quanto exagerada, afinal havia muitos anos que eu permanecia assim, esperando primeiro os acontecimentos, depois tomava decisões pífias. Da última vez que senti que o clima estava pesado demais, tomei a decisão de banhar-me, e com isso silenciei a oposição e principalmente o guardião do prédio principal.
Trácius! Gritavam o meu nome e no fundo eu ficava orgulhoso daquilo. Meti a cabecinha para fora da portinhola, - todos fizeram silêncio – e sentenciei: hoje não haverá poda das plantas. Satisfeitos, foram, um a um, de volta aos seus afazeres, satisfeitos com o comandante que elegeram.

Em 06.06.2005


quinta-feira, 25 de março de 2010

DA ESQUERDA PARA A DIREITA

DA ESQUERDA PARA A DIREITA

     Uma semana antes de ser internado na Pinel, hospital psiquiátrico da cidade, declarou à mulher e aos filhos, à mesa de jantar, (entre coxinha assada, polenta frita, suco de uva), que concordava com a internação, talvez estivesse louco mesmo ou simplesmente era uma questão de reorientação social adequada. Precisava aprumar o pensamento. Ares novos.

     Tudo se passou há dois anos atrás. Estava Ariovaldo pronto para sair ao trabalho, manhã de inverno, dia claro, quando uma ideia absurda veio-lhe a mente: era preciso fazer uma faxina geral no pátio da casa. E a obsessão se dava quando a mente insistia em direcionar que a limpeza tinha que iniciar da esquerda para a direita. Absolutamente. Rigorosamente.

     Já no volante do carro, Ariovaldo passou o dia de trabalho inteirinho pensando na tarefa. Brigava com seus pensamentos e sabia que alguma coisa estava errada. Na hora do almoço, num desse botequinhos da vida, - que o salário não dava para comer salmão -, antes de dar a primeira garfada, remoeu o trabalho da limpeza, sempre da esquerda para a direita. E imaginava-se do lado esquerdo do terreno, armado de pá, vassoura, sacos, luvas, enxada, e outros utensílios pertinentes à empreitada.

     Então pegou o garfo com a mão esquerda e iniciou o abocanhar do feijão com arroz do lado esquerdo da boca. Não foi fácil comer assim, mas devorou a comida o mais depressa possível. O resto do intervalo ficou imaginando o cantinho do terreno, a tarefa lhe agradava. Pensava também em Delma, a cozinheira do boteco em que estava, mas só um pouquinho.

     Naquela mesma noite revelou o plano para a mulher, que a princípio apenas o olhou de soslaio. O marido insistia do “da esquerda para a direita”, e quando foi dar-lhe o beijo costumeiro de boa noite, assoprou: da esquerda para a direita, no ouvido esquerdo da bem amada.

     E foi assim que Ariovaldo foi “saindo da casinha” lentamente, sem se dar conta. Num breve, pediu férias, passou na loja do Messias Ferragens e Ferrovias,  e veio todo faceiro para casa. Acordou cedo na manhã seguinte e inicio o trabalho. Ariovaldo começou exatamente como havia planejado, da esquerda para a direita, junto ao muro, perto do taquaral. Ariovaldo ficou a manhã, a tarde e adentrou a noite naquele faina. Quando a esposa se deu conta, foi ter com Ariovaldo por que ele não desembrenhava:

- Tem de ficar bem limpo e organizado, respondeu ele com ar de cansaço.

     E nisso se passaram cinco dias, e Ariovaldo ali, improdutivo, reforma agrária. Foi quando a família se deu conta que Ariovaldo estava variando. Num conselho de família, (agora regado à costela de porco, farofa, aipim e suco de laranja), atestaram que o homem estava louco. No seu afazer, Ariovaldo matutava e conversava sozinho sobre o cantinho esquerdo do terreno. Tinha o ar de derrotado.

     Passada a fase da Pinel, depois de alguns anos, todos acreditavam que Ariovaldo estava curado, inclusive ele, eventualmente. Mas à noite, sempre que podia, saia para o pátio e dava uma olhadinha para o canto do terreno e ficava pensando: dá esquerda para a direita, sempre.

Em 24.03.2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

HILDA

Hilda

Conheci Hilda Hirst quando, num dos meus primeiros passeios pelo bairro da minha nova residência, cruzei com a velhinha numa destas agradáveis ruas transversais da nossa cidade. Não sei se era primavera, mas me agradaria ter certeza disso. Levava comida e água para os gatinhos de rua, que eram vários, multicoloridos. Simpatizei na hora pela senhora.
Do que sei de Hilda é pouco, mas o suficiente para um vizinho discreto: nasceu em 1924, casou em 1940 com um sujeito chamado Clodoaldo ou Adroaldo, e não tiveram filhos. Ele morreu dez anos depois do casamento, ou menos. Ela, dona de casa, daquelas que regam as folhagens todos os dias, principalmente uma popularmente chamada dinheirinho, pilea microphylla. E as demais folhagens também, se bem que com menos carinho; ele, metalúrgico, especialista no controle de qualidade no fabrico de talheres classe A, mas iniciou na C.
Hilda tinha um pescoço absolutamente encurvado para frente, absurdamente horizontal, usava perucas de gosto duvidoso, batom vermelho-exagerado e vestidos idos há muito tempo. Antigos, floridos, compridos. E Hilda possuía com maestria o sorriso mais agradável que já presenciei na minha vida. Era encantador, suave, doce, verdadeiro. Sempre quando eu a avistava, corria-lhe ao encontro e esperava o meu bálsamo para as mazelas em gerais, que era o seu sorriso. Sempre me sentia muito bem depois de trocar meia dúzia de palavras com a Hilda Hirst, a octogenária.
Não faz muito avistei um enorme caminhão de mudanças junto à casa da Dona Hilda. Parei na calçada e fiquei por minutos parado na calçada oposta para ver se obtinha alguma informação. Aproximei-me do motorista que organizava o vai e vem das quinquilharias e perguntei pela dona da casa.
- Morreu.
Depois fiquei sabendo pelo vizinho que Hilda tinha deixado um bilhete onde, após sua morte, doava todos os móveis, eletrodomésticos e essas outras coisas - que tanto necessitamos em nossas casas - para o Mensageiro da Caridade, que é uma instituição religiosa que vende a preços populares as coisas recebidas.
Perdi Hilda e seu sorriso. Perdi seu gesto afagando os gatos rejeitados. Perdi a mão que regava uma macega qualquer, com tanto carinho. Penso que perder não é nada bom e que isso não acrescenta nada na vida, ao contrário do que já tanto escutei: tudo é um ensinamento, menino.
Dias desses espiei os novos inquilinos da casa da bondosa Hilda. Discreto, olhei para o pátio e vi uma senhora regando as folhagens que um dia foram de Hilda. Sorri.
- A vida continua, Hilda. A Vida continua minha velha.

Em 16.03.2010

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...