quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se deixa um cachorro e me deixou com o cachorro que eu havia dado pra ela. O cachorro me detestava,  ela sabia disso,  mas mesmo assim não levou alegando que não tinha ainda um local definido para ficar. Bem mentira, era certo que ia morar com uma das amiguinhas.  E deixou três ou quatro plantas que eu também havia dado pra ela. Disse que não sabia cuidar tão bem quanto eu que até conversava com elas. Me deixou e vi que havia deixado tudo o que eu havia lhe dado nos últimos dois anos. Livros,  bijuterias,  perfumes,  calcinhas.  Não levou nada de mim, nem me levou. Me vi ali, quando ela saiu, com o cão, as plantas e tudo mais.

Passados são obsoletos, falei colocando a guia no cachorro antes do passeio das dezenove.


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Batata Frita

 Batatas Fritas


Muxuxou ao pessoal de casa,  hipnotizados olhando os celulares, que ia ali na esquina buscar umas batatas para fritar para o almoço. Saiu com uma pequena mala que só o cachorro e o cágado do aquário estranharam. Na rua, chamou um carro de aplicativo que a levou para a rodoviária. Na placa do guichê correu os olhos para uma praia em outro Estado. Embarcou e se ausentou por dois meses. Durante este tempo, pelo celular, dizia aos parentes que estava passando umas férias voluntárias. Quando voltou para casa, olhou avaliativa o pessoal que continuava no celular. Trazia as batatas que logo seriam fritadas.


Feira Livre

Feira Livre


Ela com cinquenta e dois; ele com cinquenta e três. Ela empurrava o carrinho; ele uma sacola feita de palha de  trigo. Estavam na feira livre de produtos hortifruti e derivados. Na fotografia se diriam felizes, animados, bem dispostos. Mas a volta olímpica na feira não foi concluída com sucesso. Os preços nada convidativos restou carrinho e  cesto pela metade do desejado. Não veio nem nata nem alho poró. Ela decepcionada; ele ainda esperançoso de que as coisas iriam melhorar. Na sinaleira deram uma moeda pela apresentação da Colombina. A tarde prometia sol.


Cemitério

Cemitério


Ficou impressionado de um modo geral: com o descaso dos túmulos, dos jazigos, das covas afundadas. O cemitério parecia deserto de zelo. A impressão era de que até os cadáveres não estavam mais ali. Alguns arranjos de plásticos, horríveis, ainda teimavam em alguma lápide. Dizia: Foi um excelente marido. Sei, pensou. O cobre fora todo surrupiado, sobrava mesmo o que não tinha mais valor comercial. Alguns coveiros trabalhavam na capina, é verdade, mas pareciam tão desalmados quanto o cenário. A dor da morte e a saudade definitivamente não estavam presentes. Depois do cortejo vem o desprezo.


Banheiro

Girou o registo, ligou o rádio bem alto, entrou no box para tomar banho. Da sala veio o grito: baixa essa merda de música! Não se importou. Não deu bola. Não era ninguém. Que gritasse até se esgoelar. Logo estariam saindo para o trabalho e deixariam de se aturar por nove horas, e depois a novela. Tinha que comprar pilhas novas. Das grandes ou médias? Verificaria. Sem o silêncio que a música provocava nas suas confusas ideias, não ficaria. Toco de sabonete detestava, e o mofo do azulejo deixava deprimido. Antes de sair olhou o tempo no aplicativo. Cinquenta por cento de possibilidade de chuva.  


segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Praça

 Praça


Abriu o saco de salgadinho barato e deu a primeira prova para o filho maior. Depois passou para o filho do meio, depois para a menininha. Por fim, à esposa antes dele mesmo. Salgado de milho, quatrocentos gramas, crocante, de supermercado. A praça começava a fervilhar, e o feriado prometia um bom dia de diversão. Calor. Na carteira ele carregava notas que dariam bons cachorros-quentes, um para cada, com certeza. Na quadra de futebol de cimento,  as meninas disputavam uma partida nada amena. Ainda tinha que resolver a questão do refrigerante, grande, para economizar. E copos. Um passeio em família.


Cerca

 Cerca

A chuva caía gelada e fina e meu pai ajeitava os mourões da cerca. Dizia a sentença transitada em julgado que ele tinha direito em  avançar doze metros ao sul. Da cozinha, no fogão a lenha, vinha dançando um cheiro de feijão saboroso. Dentro de casa o cão latia intermitentemente para as folhas que farfalhavam vitórias na mangueira. A lide durara mais de vinte anos por causa do usucapião; papai sempre disse que a metragem estava errada e que houve avanço de terra na calada da noite. Seria trabalho para dias,  mais de cento e vinte e três metros de cerca, e chuva alguma afastaria o desejo de justiça instaurado. Quando a sineta avisasse que o almoço estava pronto, provavelmente papai demoraria a entrar, mas de forma alguma perderia o almoço de domingo. Justo e sagrado, duas coisas que não faltavam em casa.


Gato

 Gato


Ela gostaria de saber se o gato fazia a mesma coisa com os demais ocupantes da casa. Se tivesse tempo, sim, perguntaria. Ela pulava da cama mais cedo que todos, e saía antes que acordassem. E quando voltava, todos já dormiam. Pois era colocar o pó na cafeteira e o gato aparecia, sabe-se lá de qual buraco, e ficava a roçar nas suas pernas e emitir miadinhos preguiçosos. Era uma gatão, um enorme gato. Era vesgo, com certeza era vesgo. Parecia vesgo. Era traiçoeiro, era, era também. Queria ela entender um pouco daquele ritual toda manhã. Comida, água, carinho, conversa não era falta de. Mas ele queria sinalizar alguma coisa… Dizia sua  mãe que felinos se aprochegam daqueles que mais precisam de. Ela gostaria de saber o porquê, qual era o barato daquele gato, gato gordo e gato vesgo. A semana seria longa, lecionava em três turnos. 


Couve-flor

 Couve-flor


Chegou em casa todo faceiro anunciando à família que tinha ganhado uma couve-flor enorme. A colocou no centro da mesa para exposição,  que deixassem por ali, como uma flor no vaso, embelezando e simbolizando dias melhores. Cinco dias corridos e a couve-flor ali,  forte e bonita. Alguém se interessaria em fervê-la, fritá-la, gratiná-la? Nada, silêncio absoluto, ninguém gostava de couve-flor, contemplá-la já exigia muito esforço. Duas semanas e o bolor tomava conta, e a beleza e a admiração foram vencidas pelo tempo. Alguém se encarregou de colocar no saco plástico antes que a casa emplestilhasse. Logo chegariam os chuchus, verdes e suculentos


Pai

 Pai


A última vez que viu seu pai foi quando viajou duzentos quilômetros e chegou numa cidadezinha chamada Pacambi. Era domingo e o negócio estava mais parado do que o costume. Seu pai se equilibrava na parede do barzinho e o retorno para onde quer que morasse ou apenas dormisse não seria fácil. Aos poucos ele avançava, cambaleante, e já dobrava a primeira esquina. Chegou ao portãozinho, abriu a porta da casa de madeira e sumiu.

A penúltima vez que viu seu pai já fazia cinco anos. Ele deixou a casa porque a bebida o vencera. Despediu-se na saída, e irmãos, irmãs e a companheira o viram abrir a porta, caminhar até a primeira esquina e sumir da vida de todos. Dali para frente tudo mudou em casa, e felicidade tardou muito a reaparecer.

A primeira vez que viram seu pai ele estava abraçado com a companheira, sorria,  enquanto os pequenos se divertiam numa piscina de plástico no quintal de casa. O casal brindavam a felicidade, a alegria, e a um futuro cheio de paz, vida e amor.


Sinuca

Sinuca


Recebeu a mensagem no celular. Era o vizinho que estranhava que o portão da garagem da casa estava entreaberto. Respondeu para ele que há dias o portão não fechava bem e que, como era quase final de expediente, logo logo estaria em casa para resolver. 

Ele trabalhava em contabilidade,  solteirão, calvo, seborreia severa, e vivia solitário na casa de dois pisos que era motivo de disputa judicial entre ele e o irmão gêmeo. Pai e mãe haviam morrido, com menos de um mês de diferença, e herança ficou sem divisão. 

Passado das sete da noite, encerrou o trabalho. Morava perto, não mais que dez quadras de casa. Ao se aproximar,  notou o portão torto, arrombado com certeza. Empurrou com facilidade e a primeira coisa que deu falta foi a mesa de sinuca na garagem, que pertencia à família há mais de sessenta anos. Tinha certeza de quem havia levado: o irmão.

Fez um lanche rápido,  típico de quem mora sozinho, e por mensagem recrutou dois primos e uma caminhonete para o plano de resgate da mesa de sinuca.  A operação se daria às três da manhã e contava com a ajuda da esposa do irmão.  Ela abriria a porta dos fundos onde eles acessariam a garagem. O plano fracassou por um ardiloso detalhe: o irmão havia colocado um dispositivo de alarme debaixo da mesa de sinuca,  que ao primeiro movimento soou alto pela casa.

Frente a frente, os irmãos quase nem se falaram, tinham um desprezo mútuo, mas verbalmente não se agrediam. O gêmeo era alto, cabeludo e advogado. A esposa e os dois primos, que acompanhavam há anos a disputa do bem que carregava referência sentimental aos dois, propuseram que por hora a mesa ficaria ali, mas acordavam que ela era do solteirão,  uma vez que foi ele quem morou com os pais por mais anos e que veladamente  queriam que ela ficasse na casa. Na lide judicial,  o bem entrara em disputa e só na sentença a coisa se resolvia.

Deixado em casa, o careca tratou logo de deitar. Maquinaria nos dias seguintes um plano de resgate da mesa de sinuca. O irmão se saíra bem, mas nada era definitivo em se tratando de provar quem era o melhor dos dois. 


Tia Neusa

Tia Neusa encerrou o ato aos setenta e nove anos. De morte natural, dormindo. Acordou no mundo dos sonhos, dos ventos refrescantes, vamos imaginar. Dizíamos que fora vida de agradável existência e houve quem dissesse se tratar de uma vida simples e feliz, no que creio. No caixão, maquiada rosa-lilás, florida margarida, vestida como se fosse ao encontro com as amigas da associação, todos faziam homenagens carinhosas ao corpo em repouso. Tia Neusa deixou herança: automóvel conservado, mas de fabricação antiga, cobiçado. De resto, deixou na sua história vida de professora aposentada e respeitada por alunos, colegas e auxiliares. Deixou duas filhas e um filho, que se deram trabalho também lhe emprestaram alegrias de toda ordem. Deixou o marido que lhe foi companheiro até os bons últimos suspiros e que embarcou um pouco antes dela para os campos desconhecidos. Deixou sábados brilhantes e domingos cheios de sol. Deixou afagos em cães e gatos. Deixou canteiros de tantas flores. Deixou as longas calçadas e as caminhadas conversadas com cuidados necessários para orientar os planos e ajustar o passado que careceu de melhores decisões. Como um barquinho a vela branca no rio, tia Neusa se deixou desse mundo. E no fundo da fotografia que enxergamos agora, o ocaso do sol lhe dá boas-vindas. Simples e bonito assim.


Cerveja

Mãe, aonde foi o pai? Foi no mercado. Comprar o quê? O quê tu acha? Cerveja? Sim, cerveja. Teu pai só vai ao mercado comprar cerveja, às vezes traz cebolas se estão em promoção. Pra que mãe? Pra que o que? Pra que ele comprar tanta cerveja mãe? Ele diz que é pra desestressar. Mas e é? É não. É pra ficar molinho mesmo. Mãe, será que volta logo? Teu pai? É. Volta. Tem que esperar duas horas até a cerveja gelar, por quê? Nada, só por perguntar mesmo. E a senhora, mãe, toma cerveja, né? Tomo, tu não vê? Vejo, bastante, que nem o pai. A senhora bebe pra desestressar, é? Bebo. Relaxante muscular. Mãe, será que quando eu crescer vou beber cerveja? Vai, quase todo mundo toma, mas primeiro vai ter que fazer uma coisa. O quê mãe? Ir no mercado comprar cerveja. Tá.


Janaína

Janaína perdeu a guarda do filho por causa do crack. Nunca pôde demonstrar os carinhos, os afetos e os amores de mãe por causa do vício. João desconhece o pai, mas é acolhido pela tia que lhe empresta conforto há seis anos. João pensa em fugir da casa da tia porque pensa compreender melhor o que se passa e que se passou na sua curta existência. João, com nove anos, quer abraçar a mãe, acolhê-la, mas a droga construiu um cartel de desgraça afetiva entre eles. A tia se dedica de todas as formas possíveis, mas João tem uma carência dolorosa dentro dele. João vai experimentar a droga em pouco tempo, e nunca vai ter condições de criar ou dar amor aos futuros filhos, se tiver. Quando ele nasceu prescrevia no seu livro de destino que nessa condição criada por seus irmãos de mundo, só lhe restariam as piores expectativas de existência. E elas se confirmarão em breve.


Ela

 Ela


Quando ela chegou,  nem precisei abrir a porta. Eu estava sentada no sofá,  super desanimada com as últimas notícias de Brasília,  além da visão pertinente  do cara com a placa acima da cabeça, pedindo grana para comer e, em meu julgamento oscilante, se ele queria para se alimentar  mesmo ou era por uma pedra de crack. Não me cabia julgar, eu já tinha essa resposta pronta, ele que fizesse o que bem quisesse com a moeda que não lhe dei. E no dinheirão que o governo ia gastar com a quebradeira pra arrumar a bagunça e que nisso ia ter gente se aproveitando da desgraça e tirar o seu dízimo, e que ia sobrar bem menos do que não sobra para o cara da placa de papelão. Eu tava que nem ajeitava os óculos de tamanho desânimo,  que nem me mexia para pegar o controle remoto que tinha caído na noite anterior, certamente pelos três copos de vinho e, certamente, por outros mil motivos que me infernizam a vida e me colocam na poltrona, desiludida.

Mas daí eu senti que ela passou pela porta, veio pelo corredor e chegou em mim, brisa boa, de forma que consegui ajeitar as lentes. Arrumei o

prumo, estiquei a carcaça, e um perfume temperou a sala pequena do apartamento. Não sei precisar por quanto tempo ela ficou ali, a me consolar, fazer cafuné, arrancar um sorrisinho valente e a me lembrar de crianças empinando pipa em uma praça com pipoqueiro, em sino de colégio marcando o intervalo do recreio, em apito da fábrica marcando o turno das trabalhadoras, em cinema à sexta-feira, em chope e batata frita com os amigos num bar de calçada e em luas, luas e luas. Não sei, mas foi tão bom, tão esperançosamente bom. Antes que ela fosse embora, levantei da poltrona e encarei a arrumação da cama, a louça na pia, enquadrei a foto dos meus pais na parede, a roupa para estender, o café que passei, bebi e sorri. Felicidade. E depois saiu, pela janela.


Chapéu

Meu companheiro me perguntou o que eu desejava de presente de Natal. Disse que qualquer coisa, que eu era um cara pouco exigente e essas coisas que se diz quando se está apaixonado. Ele insistiu e eu resolvi pedir um chapéu. Sou calvo desde os dezoito anos e gosto de maquiar este segredo. Espero um dia poder fazer um implante, recuperar a vaidade , mas isso hoje não me dá tanto trauma porque encontrei um cara legal, estamos juntos há menos de uma ano e nossa relação tem sido ótima. 

Ele me mandou umas fotos pelo celular dos modelos que tinham na loja e eu precisava me decidir logo, uma vez que ele estava no horário de almoço e o tempo era curto. Eu ia dizendo este não, este não, este não. No fim ele comprou o que ele achou mais a minha cara e me entregou na noite do velho barbudo. Pedi para que ele tirasse umas fotos de mim e achei o chapéu muito ao meu estilo. Aproveitei para dar longos beijos em agradecimento pelo momento lindo.

No ano novo fomos passar a virada na casa dos meus pais, onde a família estava reunida. Cheguei com o chapéu na cabeça e fui cumprimentando meus familiares e apresentando meu companheiro para aqueles que ainda não o conheciam. Já acomodados, bebendo e comendo alguma coisa para forrar o estômago antes do espumante, uma tia passou por mim e disse que o chapéu era pequeno na minha cabeça. Sorri. Logo veio meu avô e disse que o chapéu era enorme, ridículo, melhor seria trocar. Agradeci. Minha irmã, depois de uma conversa sobre dores musculares e ioga, comentou que aquele tipo de chapéu havia saído de moda há mais de década. Assenti. Meia noite, fogos de artifícios, beijei e abracei a todos, em especial aquele que me deu o presente. Antes de sairmos da festa, ja com a maçaneta da porta de entrada na mão, falei com voz moderada aos que me davam tchau: chapéu, cada um tem o seu.


Lambaris

 Lambaris


Da primeira vez, convidei meu irmão para uma pescaria.  Ele inventou uma desculpa, mas tanto foi minha insistência, que por fim concordou.  Perguntou aonde iríamos e eu disse que na barragem do Jacuí seria um local bom para passarmos a noite pescando. Ele disse que naquela água só dava peixes pequenos, que já fora várias vezes e nunca trouxera peixe graúdo. Eu disse que ele estava equivocado,  que tinham peixes enormes lá. Ele me disse que pescaria era mentira, ali só havia lambaris. Eu teimei: disse que tinha escutado vários depoimentos que naquela barragem pegavam até dourado.

Enchemos o carro, pegamos a estrada, chegamos cedo e montamos o acampamento. Depois de um gole ou dois de pinga, empunhamos os caniços e fomos para a beira da água.  Durante duas horas só fisgamos um tipo de peixe, miúdo: lambaris, e foram pouquíssimos. Voltamos ao acampamento, mais um trago, conversas, massa com sardinhas e retornamos à barragem. E foi só peixe miúdo o tempo inteiro e conversa mole. No outro dia, depois do café,  arrumamos as coisas e voltamos para casa. Passados dois meses, convidei meu irmão novamente para mais uma pescaria. Ele me perguntou aonde iríamos. Disse que na barragem do Jacuí estava dando peixes grandes. Ele disse que ali só dava peixes pequenos, lambaris, mas que arrumaria o material para sairmos assim que pudéssemos. Com minha teimosia e com a paciência do meu irmão,  pescamos por mais de cinquenta anos juntos. Paramos porque a barragem do Jacuí secou. Quem a viu associada,  disse que presenciou muito peixe pequeno, mas que também havia dos grandes, principalmente da espécie dourado. Dourado é conquista que se pesca aos poucos. Não chegamos lá,  mas tentamos uma vida toda, eu e meu irmão. 


Pescadores

Pescadores.

                                       Para Ana.


Meu pai é pescador de verão. Da minha cadeira de praia o vejo pescar enquanto espero uma interação que seja animadora. Quase um mês e nem uma referência a troca de olhares na arquibancada. Olho meu pai,  estou sob o guarda sol, o mar está calmo. Meu pai vai repetir pela enésima vez o ritual: recolhe a linha, observa que não veio peixe, balança negativamente a cabeça; isca novamente,  lava as mãos na onda do mar, molha as canelas, lança a linha num esforço que parece que vai cambalear; coloca o caniço no cano de apoio; fica olhando a ponteira da vara que teima em não tremer nunca. Olho o celular,  tenho esperança, escutei uma notificação. Não é  quem espero. É uma curtida na foto que postei há pouco do meu pai tentando pegar um peixe. Ninguém fica dando olhadelas durante uma partida de vôlei,  várias encaradinhas, para depois não fazer uma tentativa de aproximação. Será que os olhareszinhos não eram para mim? Seria vesgo? Ele vai recolher de novo. Tem banhista que para na esperança de ver meu pai recolhendo um peixão. Ilusão. Criamos expectativa, é do jogo da vida. Estamos à espera de acontecimentos. Nossas linhas estão no mar, mas o resultado está sendo frustrante. Meu pai lança de novo a chumbada,  vejo a mesma empolgação. Entro no perfil dele, a foto é bem bonitinha. Meu pai apressa-se para o caniço que aparenta tremer. Coloco o dedo em cima de uma publicação sobre o cão que ele diz ser seu companheiro de toda hora.  Meu pai vai recolhendo os anzóis com entusiasmo e a cautela da chance única. Marco um coração na foto e comento: oi! Meu pai finalmente recolhe um ótimo peixe, fica excitado,  olha pra mim, levanta os dois braços e comemora. Parece um jogador de futebol que tirou a zica. Escuto o sinal da notificação.  Ele recurte e comenta: oi! Sorrio. Meu pai é pescador e eu venho aprendendo a pescar só de ficar olhando. Logo iremos para casa almoçar. O dia ficou mais lindo, o mar trocou de cor, o céu azulejou. Papai isca novamente,  eu coloco mais um coraçãozinho. Anzol fora d'água não dá peixe.


Sessão

 Sessão


Ele olhava as luminárias assimétricas, diferentes, no teto branco e se incomodava. Era o TOC. Ela dizia que tinha tomado um comprimido e que ele trancou na garganta. Ela abriu a gaveta, pegou uma bolacha de água e sal, mole, e tentou empurrar o remédio. Piorou. Disse que quando terminasse a sessão tomaria litros de água. Ele, na maca do ambulatório, se aborrecia com o tamanho das rachaduras que se avizinhavam das luminárias. 


Hambúrgueres

 - Estes bares não são mais pra nós. Só há jovens, felizes e cheios de esperança. Trocam mensagens e links em tudo que olham. Nossos bares são os antigos, aqueles de pisos encardidos e garrafas antigas expostas na prateleira de cima, cheia de pó. Nos nossos bares, só tem alcoólatras e um que outro jovem perdido. Nosso lugar é em casa, mesmo porque não gostamos de hambúrgueres e os sanduíches abertos estão cada vez mais raros.

Pedras

 Pedras


Eu já andava pelos vinte e oito anos, tinha juntado uma grana boa e investido num terreno não muito longe de onde eu morava com meus pais e dois irmãos mais moços. Sentia que precisava de espaço, que estava estorvando, fora que me sentia confiante em sair do conforto e ter meu próprio lugar. Comentei isso num jantar em família, num sábado, e ninguém na casa se opôs, concordaram, houve uma ou outro choramingo dos menores. Não demorei muito a construir uma meia-água no terreno, levar móveis, equipar com as coisas básicas para um começo de vida solitária. Um dia antes da mudança, meu pai e minha mãe me chamaram para uma conversa no fundo do quintal. Entre conselhos e palavras de apoio, me disseram para não esquecer as pedras quadriculares de granito. Que minha cota era de vinte pedras das cem que havia no fundo do pátio. Poucas vezes eu tinha reparado naquelas pedras, achava mesmo que era sobra de um alicerce, um projeto inacabado, coisa esquecida, algo assim. Não, meus pais explicaram: “Essas pedras são tua herança e o nosso parcial livramento. No final nos sobrará ainda quarenta delas e sabe-se lá o que faremos. Pelo jeito, ficarão ali, ao acaso, mas daí já não será mais nosso problema”. Levei as pedras a contragosto, as encostei no fundo do terreno novo e convivi com elas por todos os anos da minha vida, porque aceitei que fosse assim. Minha vida foi muito boa, não tenho o que reclamar.

Hoje, aqui nesse quarto branco, assistindo televisão e esperando que o moço me cuide, imagino  a vegetação e algumas árvores que cobrem as pedras que herdei dos meus pais. Por certo as carregaram com as forças que puderam, como eu mesmo fiz. Não deixo filhos, nem companheira,  amigos só de olá, bom dia e hoje vem chuva à tarde. Quando eu morrer, espero que meus sobrinhos saibam lidar com elas,  como tentei zelar com as minhas. Se não souberem, creio que a estrada lhes será mais pesada. Paciência, é do jogo.


Boa tarde

Boa tarde! Boa tarde! Sobe? Sim, está subindo mas só até o dois. E depois? Depois para, temos que levar um cofre, pequeno é verdade, para o quinto. Posso ficar esperando? Pode, mas já aviso que vai demorar. O cofre contém documentos sigilosos e segundo solicitações da viúva, as folhas não podem ser separadas. Não entendi bem. Ah, sim. Trata-se do seu Laurindo? Sim, o senhor que trabalhava no painel. Cargo importante. Não podia errar, e pelo jeito errou. Um toque no botão vermelho e íamos todos pro espaço. Verdade, li no jornal. Então, o senhor vai subir. Não, vou de escada mesmo. Sou um jornalista, queria informações. Obrigado. Obrigado. Bom trabalho. Igualmente. Ah, quando foi mesmo a última manutenção do elevador? Espera aí. Aqui diz que foi ontem. Sim, ontem. Certo. Obrigado. Boa sorte. Boa tarde.


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Espaço

 Espaço

 

Tudo que fiz para você, não me arrependo de nada. Voltava, mesmo sabendo do erro que foi nosso encontro, e faria de novo. E voltaria mil vezes, só para te ver, como dá primeira vez. Você me deixou no espaço e levou a música. Estou só, e o que vejo são borrões de lembranças. Você não vai voltar, disso eu tenho certeza. O que sobrou de nós senão os vidros quebrados na calçada? Não há reconciliação, resta uma desculpa barata, um pão com manteiga, café requentado em tarde úmida.

Tudo que fizemos por nós foi um transcorrer de tempo. Você bateu a porta e não pediu nenhuma recordação para levar ao teu mundo novo. Me deixou com um monte de inutilidades que enfeiam a casa e só me fazem sofrer. Aqui no espaço, apesar da dimensão, essas coisas vagam sem sentido como uma febre terçã.

Tudo que passamos nos levou à encruzilhada. Fiquei parado e você sumiu na estrada. Olhei tantas vezes para você, pensando que ias olhar para trás, acenar, voltar, e isso não foi possível porque não havia mais nenhuma esperança entre nós. Aqui no espaço faz frio, é vazio, escuro, sem som. Se me restasse alguma força, soltava um grito ao eco do infinito dizendo que ainda te amo, aflito.


terça-feira, 1 de agosto de 2023

Amor Relâmpago

Amor Relâmpago

As melhores fotos que eu tinha dela e com ela, acendi um fósforo e queimei em poucos minutos. As outras, queimei também, mas com menos raiva e menos pressa. As cartas, cartões, bilhetes, coloquei junto ao lixo orgânico, com pena na alma, e atirei pelo buraco do coletor do edifício. Naquela noite pouco dormi, imaginando as palavras escritas cheias de amor sendo levadas pelo caminhão, esmagadas, para o aterro sanitário. Nosso amor foi relâmpago. 


Nos conhecemos num bar. Num olhar, naqueles que plugam, o interesse se deu como combustão do hidrogênio. A dose de vodka me desinibiu para o primeiro aceno. Lembro ela me falando do ex-namorado e lembro do meu olhar fixado no vermelho do batom. Os beijos duraram três meses e o amor girassol sem noite. 


Marcamos num bar para comemorar os três meses. Levei flores. Entrei, vi ela sentada com um cara, me aproximei e ela me apresentou como seu ex-namorado. Joguei as flores na mesa e saí porta afora me sentindo um grande imbecil romântico. O amor é um passado em chamas. Até hoje não sei se o ex se referia a mim ou ao cara da mesa. No quesito jogo, não pago pra ver.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Celulares

Disse ao pessoal de casa, que cabisbaixos olhavam os celulares, que ia ali na esquina buscar umas batatas para fritar para o almoço. Saiu com uma pequena mala que nem o cachorro companheiro estranhou. Na rua, chamou um carro de aplicativo que a levou para a rodoviária. No guichê procurou uma praia em outro Estado. Embarcou e se ausentou por dois meses. Durante este tempo, pelo celular, dizia que estava passando umas férias de urgência. Quando voltou para casa, olhou avaliativo o pessoal que continuava no celular. Trazia as batatas que logo seriam fritadas.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O Lixinho II

O Lixinho II

Bonifácio é daqueles que param na rua para ver o que as pessoas jogam no lixo. Com calma, observa lixinhos como se fossem preciosidades. Pode ter certeza de que sempre há coisas muito interessantes no lixo dos outros. Para uns, preciosidades; para outros, lixo mesmo.
E aconteceu que um dia, olhando o saco furado do lixo seco do comerciante da casa trinta e sete da Rua Cabral, observou um objeto brilhante que chamou a atenção.
Bonifácio não tem intimidade alguma com o cobiçado metal, logo percebeu do que se tratava. Um Ourinho! Era uma barrinha de ouro, com certeza era. Barra pesada, avaliou Bonifácio.
Claro que o interesse do Bonifácio não foi abalado, ouro nenhum levaria seu sossegado trote de viver. A vida não era pra se ganha, era pra ser vivida, acreditava muito mais nas margaridas que tinha no fundo do quintal do que no cobiçado ouro.
Colocou o ouro novamente no saquinho furado tendo cuidado em escondê-lo melhor. E se foi, faceiro como chegou, observando outros lixos.

Ouro nenhum lhe tirava o sossego.




O Lixinho

O Lixinho

Bonifácio é daqueles que param na rua para ver o que jogaram no lixo. Um macaco coletor e parasita. Com parcimônia, examina cada lixinho como se fosse preciosidade. Sempre há coisas muito interessantes no lixo dos outros. Coisas que aqueles não dão valor mas que para ele pode ser uma preciosidade.
Engraçado que dias desse, olhando o saco furado do lixo seco do comerciante da casa trinta e sete, cito à rua Cabral, observou o metal brilhoso que chamava atenção.
Era uma barrinha de ouro, com que certeza era.
Mesmo Bonifácio não tendo interesse alguma com o vil metal, logo percebeu do que se tratava. Ouro mesmo. Quem gosta de ouro é banco.
Claro que o interesse do Bonifácio não foi abalado, ouro nenhum levaria seu sossego. A vida não era pra ser ganha, era pra ser vivida, disso sabiam até as margaridas do seu quintal.
Colocou o ouro novamente no saquinho furado, tendo trabalho de escondê-lo melhor, e se foi, faceiro e farejante como chegou, e em busca de outros lixos

Ouro nenhum lhe tirava o sossego.


Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...