segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Bonifácio - Um Artista

Bonifácio – Um Artista


Um dia meu pai chegou em casa e disse que tinha descoberto sua profissão:
- Desenhista!
- Mas como, Bonifácio, tu nunca pegou num lápis, disse Mamãe.
Acontece que Bonifácio andava rabiscando às escondidas na repartição e descobriu que aquilo lhe dava muito prazer.
- Pois é, mas vou ser desenhista.
E foi assim que comprou montes e montes de papeis, lápis, tintas. Tudo a prazo.
Com muito prazer as crianças viram o material chegar pelos Correios e ficaram entusiasmadas com a possibilidade de entrarem naquela brincadeira artística.
- Não. É coisa profissional. Vou ganhar uns pila com isso, nos disse Papai.
Acontece que se passaram meses sem que o homem se resolvesse no assunto. Nada de desenho. Tudo numa mesinha, novinho, aguardando. E a família perguntando se a arte saía ou não. Dado por vencido e muito aborrecido, Bonifácio desistiu de tudo e repartiu com as crianças o material, que prontamente iniciaram as peripécias, com destreza que deixou Bonifácio de queixo-caído.
Em casa Bonifácio não produzia nada, mas na repartição todos o olhavam com atenção, o homem se esmerava na forma, nas curvas, no capricho dos traços, mordia a língua, e fazia belos desenhos que logo eram esquecidos numa gaveta.

Há coisas que só se faz a distância, senão não neca de pitibiribas.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Casal - A Mão Ela Não Dá



Casal – A Mão Ela Não Dá

Ela não dá a mão pra ele. Ela não dá mesmo, não dá.
Caminham pela rua e ela justifica dizendo que há um jornal ou sacola a levar, que está calor, que está frio, que é ruim caminhar assim. Raríssimas vezes se deram as mãos, isso foi no começo do namoro, na faculdade de arquitetura, só para marcar posse, propriedade. Ela se interessou por ele porque sua aparência chegava próxima a de um manequim de vitrine. Porque ele ficava tipo estátua, tinha bom gosto para se vestir, cabelo penteado, cinto de couro grosso, idéias claramente afirmativas, carro novo, dentes branco-retros, camisa abotoada, barba feita, sapatos de couro mocassim, brim coringa, sem brinco, sem frescura, sem afetações, sem palavras, sem exigências, sem rompantes, sem grandes ardores. Ele era um cara super normal, e ela era super amarrada na imagem super legal que ela achava que ele transmitia. Ela era bonita sim, cabelo curto, batom vermelho, cinto fino e tão assim-assim quanto ele. Ela era conservadora e sabia que aquele amor seria seguro, para sempre, e até agora não errara no julgamento prévio e não apressado.
Pela rua, depois de quinze anos juntos, sem filhos, bem empregados, descolados das mazelas do terceiro mundo e da crise no Oriente Médio, alheios a políticas e religiões, ela não dá a mão para ele. A mão dele é lisa, macia, com cremes hidratantes e antienvelhecimento. Ele nem reivindica, acostumou-se com sua ausência, seu jeito algébrico de encarar o amor. Sexo só por esporte, com camisinha, depois de duas taças de vinho, na quarta-feira à noite. E só, só isso. Ele a ama demais, mas não toca nesse assunto por medo de perder o amor que alimenta, e pelo futuro incerto que tudo pode mudar. Ela não o ama porque estas coisas do amor não a interessam. Ela gosta de arquitetura mas não dá bola para literatura, romance, poesia. O casal não tem bichos, nem mesmo um gato. Ela não gosta. Ele gosta, mas não discute.
Antes de saírem do apartamento pela manhã, cada qual para o seu trabalho, ela analisa a postura do boneco, principalmente se distribuiu bem o tom do brim com o cinto e a camisa, o casaco, se passou a escova que ele acha boa por ser macia e acarinha o coco. E confirma a decisão acertada há mais de quinze anos.
Mas a mão não dá. 

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...