sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Bonifácio - Adultério

Bonifácio – Adultério

Abriu com cuidado a porta imaculada. Os olhos procuraram na sala retrô algum objeto que a denunciasse. Lá estava: uma sandália vermelha, solitária, entre a mesinha e o sofá. Era prova suficiente. Mais uma vez traído, fechou com cuidado a porta. Aguçou os sentidos e pôde escutar o barulho do chuveiro elétrico. Purificando-se ela. Quanto incomodo, quanto zelo.

- Se é pra ir, vamos de uma vez!

- E as cachorras, quando vamos dar as vacinas? Aquilo vence.

- Pegou as chaves?

- Peguei. Acho que guarda-chuva não, né?

- Hoje à noite ia bem uma carne de tatu, recheada.

Podia desligar o interruptor da caixa de luz, só por prazer. Mas era golpe sujo. Abandonaria o apartamento e a sua vida assim que saísse o dinheiro da ação trabalhista. Dera uma dentro não comentando nada com ninguém. Mas, na hora agá, ali, com a grana na mão, cederia aos seus encantos. Um trouxa sempre fora.

Entrou no quarto. Ela esquecera a toalha no cabide. Sempre igual. Pego-a e teve intenção de entregar. Ato contínuo, outro pé da sandália vermelha atirada desdenhosamente em cima da penteadeira, presente da tia Dulce, a incriminava inapelavelmente.

Sentou-se na cama, esperaria ela sair molhada do banho, e com a cara de tolo entregaria a toalha não sem antes desviar os olhos.



Em 25.10.2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Bonifácio – Uma Morte

Bonifácio – Uma Morte

Fechou a porta com cuidado, girando antes a maçaneta: lingueta para dentro, fechadura sem clique, ruído nenhum. Ainda com sangue nas mãos, descendo as escadas de granilite do edifício de 1954, tateou no bolso direito da camisa azul a carteira de cigarros. Logo que saísse à rua acenderia um para saciar o vicio. Fora tanta frieza desta vez que estava impressionado.

- Segunda-feira começa a vigília, vais?
- Vou. Mas antes me dou um tiro, com certeza.
- É uma semaninha só, parece que vai ter até salgadinho para quem ficar até o fim.

Aquele negócio de oferecer antenas digitais estava ficando muito manjado. As pessoas quase não abriam mais as portas, era muita coisa ruim acontecendo no mundo. Desta vez, se não mencionasse a tal da promoção, não entrava. E, coitada!, não deu nem um grito, medo puro, quase sem graça.

Só faltava passar o portão externo e pronto, estava livre. Não convinha pegar o cigarro agora, estava tentando para de fumar.

- O chuveiro está dando choque, qualquer hora destas fico grudada.
- Vai com um pano seco, usa chinelo. Tenho que inverter os fios para ver se funciona. Anísio disse que dá resultado. Tem o tal do neutro, também.

Bonifácio pensou em lavar logo a faca e se livrar da encrenca de uma vez. Logo ali uma praça com bebedouro. Era só esperar a mãezinha sair com o bebê e o cigarrinho seria acesso.

em 19.08.2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Bonifácio - Jogo de Futebol

Bonifácio – Jogo de Futebol


Não havia a menor possibilidade de ir ao jogo, a grande final. Além de estar devendo para todo mundo, tinha a rixa com o vizinho por causa do muro.


- O feijão tá queimando, não tá vendo?
- Feijãozinho ruim é assim mesmo. A Elvira não vem mais no sábado.
- Manos mal, depois da história do Patrício, melhor não vir mesmo.
- Abre a panela de pressão, coloca a carne, levanta!


E se colocasse um arame farpado era melhor, tela saia muito e Bonifácio não tinha habilidade para tanto. E esse negócio de ficar se espiando ficava até meio chato, vai que o outro interpretasse de outro jeito a coisa.


- Será que passa na tevê?
- Mas como! É final, minha nega. É final. Isso é partida pra todo mundo ver. Venho até pensando numa frase: “somos todos encarnados”, vou levar pro Alceu para ver se ele faz um texto.


Um arame farpado não saía caro, e na agropecuária não devia nada. Alicate pedia pro Vaz, até domingo estava tudo pronto.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Bonifácio – O Cunhado

Bonifácio – O Cunhado


Bonifácio cruzou os braços e esperou a explicação que parecia embaraçosa, mas não era.


- Eu tento, dizia ele, tento de tudo quanto é forma. Só que o meu conhecimento é maior, logo fico sabendo demais e por isso me desemprego com facilidade.
- E concurso público? Como é?
- Não, isso é pra gente mesquinha, medíocre. Livros parados na estante, traças, mofo.

O jeito era depositar mais um mês a pensão à irmã. O cunhado não queria nada com nada, um enrolador. Tanto conhecimento, duas faculdades, curso de extensão. Mas trabalho que era bom, nada!


- Amanhã tenho uma entrevista. Contabilidade pública aplicada ao privado. Dou um jeito, vai ver.
Bonifácio fez o cheque meio a contragosto, como nos meses passados. Os sobrinhos teriam o que comer. A meia furada no dedão o incomodava uma barbaridade. Isaura não dava jeito naquilo, nem naquele gato manco. Ele mesmo trataria de eliminar o rato, a coisa se prolongara por tempo demais.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Bonifácio - Enterro

Bonifácio - Enterro


- Será que o plano de saúde cobre a despesa do enterro?


- Funcionário público, raia média. Pelo que sei, não tinha direito nem a caixão de pinheiro. Tu vê, nem um salgadinho pra gente. Olha o coveiro...Nossa!


Bonifácio aguardava na entrada principal, olhava o céu nublado e avaliava: a chuva seria grossa? Guarda-chuva não trouxera.


A viúva entrou solenemente. Toda de preto, exceto pela guia do Senhor do Bom Fim, vermelha. O assoalho havia sido lustrado não fazia muito.
O defunto estava lá, esticado, uma cara de quem deixava dívidas e remorsos.
O outro cutucou:
- Olha aí, nenhuma lágrima.
- Eu disse, eu disse. Psiu! Tem bala aí?
O Padre só chegaria as quatro, o cemitério fechava as cinco, muito roubo naquele fim de mundo. O jeito era enganar o estômago com um cafezinho no boteco do outro lada da rua, a coisa se arrastava sem graça alguma.


Não, não, não. Ia ser fina a chuva, pensou Bonifácio. Entrou na capela, uma ave-maria e dava-se por terminada a empreitada.










terça-feira, 10 de agosto de 2010

Bonifácio - Asfixia

Asfixia


- E então, como foi a coisa?
- Tranqüila. Dormia, acho. À noite, antes das oitos horas, pediu leite com bolachas doces. Depois, arrastando-se, voltou para a cama. Não escutei mais nada. Depois...depois você sabe.
- E as apólices?
Bonifácio esfregou as mãos. Não era frio que sentia. Um gelo na alma.
- Não te preocupa. Tá no cofre, junto com o lenço uruguaio do papai, de 1950.
- E agora?
- Agora é só esperar o dia raiar.
Bonifácio foi na cozinha, acendeu o fogão. Um chá cairia muito bem.

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...