O CHIMARÃO
Botou água para esquentar. O cérebro cansado tentava refazer cálculos de um passado repleto de recordações. A vida valia mais do que uma água a ferver? Perguntou-se. Planos, projetos, dores musculares terríveis as quais o médico nunca pôde diagnosticar com precisão. “Mammãe, não identificamos suas dores”. Que dores eram aquelas? Quem estaria preocupado com suas dores, com seus amores, com seus andares?
E ninguém respondia naquela casa deserta. As coisas da casa talvez respondessem. A velha, enferrujada, panela de ferro, diria: É tarde, Mammãe, deixe de bobagem, esqueça isto. Naquela casa, a casa, no centro da grande cidade. Já viram: casa, mais casa, mais casa: dá cidade. Aquela casa, cansada hoje, viu correr pelo assoalho comido por cupins dez filhos famintos por vidas que viriam. Vidas que um dia, um dia em que a água fervia, esqueceriam que a mãe ainda colocava a água para ferver, água que deslizaria pela erva reaproveitada. “Põe a cuia na geladeira, comadre. No outro dia a erva ainda está boa”.
Chupava a lembrança. Lançava olhares nas dores mais alegres dos partos sofridos, seus. Os filhos nasciam. Umdoistrês... dez! “Dez filhos, Mammãe? O que a senhora vai fazer com todos eles, Mammãe?”. Poderia ter pensado o médico ao cortar o décimo cordão umbilical.
Mais um cevado. Quem quer tomar comigo? Não tem para quem oferecer. Casa triste. Foi alegre, foi. Pensa Mammãe, ao vento. Quem quer compartilhar com ela? Não se assuste. Não é tristeza o que sente. Devaneios misturados a razões de uma vida cheia de passados, repleta de perguntas. Felicidades? Claro, aos montes, mas agora não. “Mammãe, onde está minha gravata do uniforme do jardim de infância? Mãmmãe, pão com manteiga, de novo? Mammãe, eu não agüento mais esta casa! E nunca mais meu irmão é meu irmão!”.
O gás vai acabar. A água vai parar de ferver. Ela vai pensar em ligar o rádio e escutar as últimas notícias. Vai tentar saber se o mundo vai bem. Saber quais são as últimas medidas do governo, vai, e se a primeira dama vai curar-se da torção do entorse no tornozelo direito. Saber, por saber, se a cotação da moeda vai cair ou subir, e confirmar se o tempo vai mesmo melhorar. Não, não, não, pensará Mammãe. Tudo é uma grande mentira. A grande verdade é a água a desmoronar o monte verde, é o gosto amargo a descer goela abaixo. É sentir o coração insistir em perguntar, apertado, onde estão os dez filhos que saíram chorosos das suas entranhas, e chorosos partiram sem compartilhar o chá da comunhão.
- - Bebe, Mammãe, se não a água esfria.
- Compreendeste bem?
A BOLSA E O ESPEHO
Depois de velha, um fim-de-semana na praia, convite de um filho com alma, cairia muito bem, não? – Andam muito ocupados, mentia às outras velhas, nas rodas de chimarrão. Mammãe mentia muito bem. De todas, talvez fosse a que representasse melhor. Que diferença fazia dizer que os filhos tinham muitos compromissos. Ela tentava mentir bem. Mas para as amigas, já que eram amigas e sabiam que ela estava mentindo, que diferença fazia? Chega uma idade que mentir não tem mais graça.
E o convite veio, veio na última hora. Chegou com a ressalva de que não levasse muita coisa. O carro era pequeno e ainda havia de se resguardar o espaço do cão peludo que custou sabe-se lá quantas patacas. E ela ficou contente, ora. Não por causa do passeio, das horas trancadas no carro e das baforadas de fumaça. Definitivamente não. O que Mammãe queria ver era o mar. O que ela queria era olhar o mar, pisar na areia, ver o movimento incansável das tatuíras e a língua pesada do marisco a chupar a areia num coito insaciável. Queria sentar à beira da praia, sentir o vento bater nos seus cabelos e voltar a rever velhas fotografias de veraneios longínquos. Relembrar o papai chegando no velho sobrado de madeira, abrir a porta e dizer a todos que aquilo era o paraíso. Ouvir a voz da mãe mandar buscar pão e salsicha para fazerem a primeira refeição depois de uma viagem de cento e vinte quilômetros a cinqüenta por hora, no Ford bigode pretão.
Mammãe ia pensando nestas possibilidades. Abriu o armário e pensava nas roupas que levaria. Não esquecer: não levar muitas coisas. Poucas coisas, disse o filho. A pequena bolsa aberta na cama esperava as poucas mudas de cama. A bolsa aberta em cima da cama parecia dizer: não me encha muito Mammãe, o filhinho pode ficar bravo e nem levar Mammãe. O cachorro pode não gostar de dividir o pulguento banco com Mammãe.
Freneticamente, antes que fosse colocada uma única peça de roupa na bolsa, o telefone tocou. E o telefone falou muitas coisas. O telefone fala que não tem mais praia, que não tem mais marisco nem tatuíra. Que não tem mais fotos antigas, nem lembrança de vovô tomando suco de limão galego para matar a sede. Mammãe desliga o telefone, sabe que a ligação e de aparelho móvel e que custa caro para o filhinho,-ele já disse em outras oportunidades, repetidamente. Mammãe poderia ficar triste, mas ela é a pessoa mais forte da família e já ouviu tantas mentiras que uma a mais, uma a menos, não ai fazer diferença no balanço final. Mammãe sabe que a bolsa aberta vai retrucar abrindo o seu fecho: eu não te disse! A voz do telefone tem compromissos inadiáveis. Acho que desta vez até o cãozinho vai ficar de beicinho.
E Mammãe vai guardar a bolsa no armário e vai dobrá-la com muito carinho. Sabe que a bolsa é rude e não tem meias palavras, e que se amam por sua completa sinceridade. E antes de dormir, Mammãe vai sentar-se em frente à penteadeira e encarar aquele que lhe pergunta todas as noites, antes do descanso: quem te fez assim, velha?
A MAÇÃ
Levantou-se lentamente do sofá. As pernas cansadas exigiam cautela com os movimentos mais simples. Caminhou até a cozinha, e mesmo sem ligar a luz, tateou a maçã desejada para ser degustada antes do início da novela da noite. Pegou uma faquinha de ponta e voltou ao seu lugar predileto: o cantinho do surrado sofá. Descascou com singeleza a saborosa fruta. Ia pensando, mesmo enquanto o personagem principal esbofeteava a atriz secundária, como era elementar aquela maçã. Mammãe sabia escolher, cortar e saborear uma maçã. Dava muito valor à fruta, aos seus poderes milagrosos de fazerem sempre o bem, mesmo que a fruta estivesse podre. Mammãe sabia que mesmo as frutas podres podem ser boas. Mammãe sabia o que era bom.
O telefone tocou, estridentemente. O telefone sempre interrompe alguma coisa: um simples pensamento, sobre maçãs, por exemplo. Aquela campainha penetrava seus ouvidos e prenunciava vozes chorosas. Antes que desse a segunda chamada, Mammãe levantou o fone do gancho, e com sua voz arrastada tentou saudar um alô otimista. Do outro lado, a voz desesperada iniciava um monólogo enfadonho. Mammãe escutava já gulosa pela primeira dentada. Mas Mammãe era educada, não convinha, diante de tanta notícia ruim, divertir-se e deleitar-se com a suculenta fruta. Esticou o braço e descansou a frutinha no acento lateral, noites mais noites vazio.
E Mammãe ia concordando, ia dizendo “ãrrã” de segundo a segundo. Ia informando que ali estava, ouvindo, entendendo, sendo solidária e compreensiva com tudo o que estava se passando com a pessoa do outro lado da linha. Mesmo porque Mammãe já era velha demais para não concordar com alguma coisa. Mammãe estava ali, sentadinha, sozinha, justamente para isso: compreender.
A voz continuava. Expunha situações desagradáveis, desafetos, trocas de rudes palavras. A voz era interminável. A queixa parecia não ter fim. Mammãe prestava muita atenção: um ouvido na voz, um olho na reconciliação dos personagens e na maçã cortada, pronta para a primeira dentada. Mammãe nunca soube ao certo onde tudo aquilo ia acabar. A voz, a novela, a maçã. Ela tinha esperanças, remotíssimas, que fossem nesta ordem: a voz diria boa noite, Mammãe; a maçã sulcaria: morda-me com prazer, minha velhinha; e a novela acabaria numa cena dramática em que a filha descobria-se adotiva, triste e traída. Mammãe sempre teve muitas esperanças na vida. Não destas esperanças de ganhar na loteria, ficar rica, comprar uma dentadura de ouro. Mammãe tinha esperanças na vida, nas pessoas, nas coisas mais simples.
Tudo se deu ao contrário. A última cena do capítulo Mammãe perdeu. A voz do telefone avisou que estava indo atender a porta. Trancaria com mil cadeados a entrada do apartamento para que o reclamado, o irresponsável não pudesse entrar. A voz ainda mandou que Mammãe ficasse de plantão, caso acontecesse alguma coisa, o telefone voltaria a berrar pedindo socorro. E a maçã, enquanto o tempo passava, foi perdendo o viço, o suco, a sedução da dentada gostosa.
Mammãe adormeceu no sofá.
Lá, a voz abriu a porta e reconciliou-se num piscar de olhos, depois de duas palavras do reclamado. Mammãe, boquiaberta, teve pesadelos terríveis naquela posição incômoda. Sonhou coisas insólitas e desagradáveis.
Na manhã seguinte, Mammãe deparou-se com o primeiro noticiário da tevê, com o fone quieto, domado, dócil, repousando na base, e com a maçã escurecida pelo tempo. Mammãe não teve dúvidas, deu aquela desejada dentada, sentiu o gosto já apodrecido pela noite. Antes de levantar-se e iniciar a luta contra os ossos e músculos endurecidos, pensou: uma maçã podre tem o seu valor, limpa os intestinos.
A COMADRE DA MAMMÃE
Às duas horas da tarde, principalmente quando chovia, Mammãe ia visitar a comadre que morava do outro lado da rua. Antes de sair, tinha o cuidado de contar, com a ajuda dos dedos, onde tinha mandado os filhos. Uns tinham ido à escola, outros estavam brincando na pracinha, provavelmente jogando bola, e os mais velhos trabalhando, ganhando a vida. Mammãe lavava e costurava para fora, e como a renda não chegava para alimentar os muitos filhos, achava por bem, e muito justo, mandar os filhos mais velhos ao trabalho.
Mas Mammãe, apesar de tudo o que acontecia no mundo: guerras, brigas, ganância, discussões, disputas, discordâncias, dissonâncias, discrepâncias, do pâncreas, do fígado, do rim e do ruim, lá pelas três horas da tarde, ia visitar a comadre, ali, do outro lado da rua Florida. Lá se reunia com comadre, e também a mãe da comadre, que andava lá pela casa dos noventa anos, e quiçá a mãe da mãe da mãe da mãe, da... Fantasma existem, pois não? Ainda mais que tratavam de assuntos tão graves.
Ir à casa da comadre não era ir cotidianamente em um lugar e ver as horas correrem. A casa da comadre era bela, bem pintada, móveis modernos, relógio de cuco, quartos fechados à chave, televisão com controle remoto, quadros pintados a óleo. A casa era rica, um luxo. A casa era um sonho para Mammãe. A comadre era rica, também, de coração. E lá mammãe se sentia uma pessoa respeitada pelo simples fato da comadre perguntar-lhe, todos os dias:
- Olá, Mammãe-comadre, e essa vida?
E como essa pergunta era importante para mammãe.
E seguiam-se, talvez por duas horas, - e enquanto isso seus filhos ganhavam o mundo - conversas das mais diversas, simplicidades do dia-a-dia. Quando Mammãe voltava para casa, ela se sentia mulher, responsável pelo bando de filhos, responsável pelo destino de cada um, responsável pelo futuro, dela e dos seus.
A comadre, com os anos, tornou-se a pessoa importante para Mammãe. E de todas as coisas que elas falavam naquelas sevadas tardes maravilhosas, ora embaixo do pinheiro no quintal florido, ora na aconchegante cozinha com exaustor, diziam respeito às receitas de comida, principalmente as receitas de chimia. As comadres poderiam passar uma vida inteira falando em chimias de morango, de abóbora, de pêssego. Chimias coloridas e saborosas. Chimias doces, feitas com lágrimas, suores e amor, feitas à beira do fogão à lenha.
A comadre era a melhor amiga da Mammãe. Mammãe jamais acreditou que um dia sua melhor amiga ficaria triste, esquecida das coisas, calada, sem poder dizer palavras, pois simplesmente a memória abandonou comadre. Mammãe ficou triste ao saber que a comadre já não poderia lhe perguntar:
- Vamos tomar um chimarrão?
E ainda Mammãe foi muitas vezes na casa da comadre. E por muitas tardes conversou sobre o custo do e o custo da. Mammãe não se importava de ficar falando enquanto a mammãe da comadre ia ao quarto chorar pela doença inesperada da filha.
Um dia a comadre, já acamada, deu um último suspiro. Mammãe viu este último momento, mas não quis chorar naquela casa que era tão linda. Mammae foi para sua casa, buscou na figueira os figos mais verdes que havia, colocou uma boa lenha no fogão, e numa panela pura, queimada pelo tempo, iniciou uma deliciosa chimia. As lágrimas de Mammãe eram muitas e pingavam na panela, misturavam-se à chimia. Aquela foi a chimia mais amarga de toda a sua vida. E todos os filhos a comeram, agradecidos.
BIFE COM CEBOLA
Mammãe cortava a cebola em pequenas fatias. Ao Meio dia teríamos bife com cebolas fritas. À medida que a faca cortava as fatias, o cheio forte da cebola chegava aos olhos de Mammãe, junto às lágrimas imperceptíveis, os pensamentos, as idéias, as coisas. E por incrível que possa aparecer: havia felicidade em tudo isso.
Mammãe poderia ter sido tudo na vida. Aos vinte e dois anos chegou à conclusão que queria ser mãe, dona do lar: varrer todos os dias a casa, bater o tapete poeirento na árvore da frente de casa até que o pó se perdesse pela rua dos seus vinte anos em diante. Mammãe poderia ter sido médica, advogada, bailarina de casa noturna, vendedora de cosméticos, líder comunitária, representante do Brasil na ONU. Mas não, que esperança... Queria ser do lar. E Foi.
Conheceu o marido por acaso, sentada, oferecida, em frente ao armazém do seu pai. Ele passou, olhou para suas grossas coxas, e seis meses depois a Igreja católica selava aquele matrimônio que duraria não mais que vinte anos e muitos filhos.
Mammãe cortando cebola parecia chorar. Ela estava muito feliz, destas felicidades tímidas, solitárias, estranhas. Tinha sua própria casa, os meninos e as meninas se criando, estudando, trabalhando, enfrentando. Ela cortando cebolas, iguais há vinte anos atrás. Óleo na frigideira chamava: vem cebola, vem! Mammãe sempre fora do lar. Sabia a hora exata de colocá-la para fritar, sabia a hora exata de abrir as grossas coxas para o marido, amá-lo naquele exato instante enquanto fazia as contas para saber quanto tempo faltava para ele deixá-la.
Poderia ter sido qualquer coisa nesta vida, preferiu o mais difícil, o menos egoísta, a mais emocionante das profissões: ser mãe uma vida inteira. Saber a hora exata da cebola, do óleo e da frigideira. Saber a hora exata de quando era meio dia, estômago faminto, olhares atônicos a perguntarem:
- O que temos hoje, Mammãe?
- Hoje temos bifes acebolados, filhos, responderia Mammãe, durante muitos faceiros anos da sua vida.
ROSTOS DA MAMMÃE
Mammãe não tinha mais de dezenove anos. A vida ainda ia mansa, aprendia a fazer doce, caprichava no caderno do ginásio, usava saia, exibia as coxas eram grossas. Não havia ainda sérios pretendentes, mas já cruzavam olhares mais intensos em seus seios de italiana faceira.
Bem nessa época, onde tudo era azul, veio o primeiro sinal da doença eterna. Bateram na porta da frente, Mammãe foi correndo atender. Eram um homem, meia idade. Contou-lhe uma história curta e triste, queria um dinheiro para retornar a sua cidadezinha. Enquanto o homem falava, Mammãe decodificava, olhava cegamente para aquele rosto vincado, murcho, sofrido. Correu a cristaleira da mãe e pegou algumas moedas. Na entrada, baixando os olhos, Mammãe entregou o dinheiro, fechou a porta e voltou ao sofá.
Poderia dizer, narrando, que Mammãe chorou muito pela situação. Mas não. Não foi bem choro que se viu. Ou se foi, foi coisa interna, do coração. Mammãe sentou no sofá e ficou repensando aquele rosto triste, pedinte. Aquela cara curtida, humilhante.
Depois daquele dia, quantas coisas aconteceram. Pode-se dizer que Mammãe foi, até o último suspiro de vida, feliz. Bem feliz. E também se pode afirmar que Mammãe viu naquele rosto toda uma condição humana, toda uma contrariedade, um paradoxo. E Mammãe guardou este segredo e levou consigo, no seu coração, para outro mundo. E Mammãe ensinou que certas coisas não se aprendem ensinando. Certas coisas vêm da alma, basta um simples olhar, um breve toque, um aspirar mais atento e pronto: aprenderam-se coisas que só a compaixão pode ensinar. Mammãe sabia coisas que não podia ensinar.
A COMIDA
Se naquela época Mammãe tivesse um relógio eu iniciaria assim: “Mammãe olhou o relógio, faltavam poucos minutos para o meio-dia”. Mas naquela época Mammãe não tinha, e seguimos assim: pelo movimento da calçada, Mammãe ficou desesperada, logo chegariam seus filhos do trabalho, famintos, loucos por um prato quente de comida. Como dizer a eles que o dinheiro não deu para comprar um pedaço de carne, o arroz e feijão, uma abóbora, um pimentão para rechear? Há certos momentos da vida em que já não há mais justificativas, deixa-se a coisa andar por si só e seja o que Deus quiser, poderia ter pensado Mammãe naquela manhã.
Mas ela não pensou nisso. Os filhos menores brincavam no pátio, esqueciam do estômago, inventavam histórias onde pedras eram carros, palitos eram gente, paninhos:camas, papelões:casas. Tudo uma grande invenção. Deus estava admirado, certamente. Mammãe não. A senhora pensava apenas no que faria com um punhado de grãos. Quem sabe pedir bexiga ao dono da casa de carnes, à vizinha ao lado, ao padre. Que nada, sempre lhe faltou coragem para este tipo de coisa, o orgulho era a única virtude intacta daquela que sempre segurara a situação.
E como num conto de fadas, ou como obra do destino, ou justiça dos deuses, ouviu-se um toc-toc na porta da frente. Era a filha da costureira que vinha trazer o dinheiro dos vestidos alinhavados nas madrugadas de trabalhos de Mammãe, ou nos intervalos dos serviços domésticos. Serviço que ela fazia para driblar o tempo, os pensamentos, as mentiras da vida. Mammãe sempre teve mania de ficar olhando o infinito, como se ficasse, concentradíssima, medindo o espaço entre o nada e coisa alguma. Sempre Mammãe foi muito de pensar, sempre, sempre. Que coisa!
A menina trazia o dinheiro salvador. Mammãe mandaria um dos meninos na bodega da esquina e resolveria sua aflição. Mammãe nunca deixou de acreditar em Deus. E mais agradeceu do que pediu. Se aquela menina não tivesse batido na porta e não trouxesse o dinheiro, Mammãe não pediria e Deus. Mas como a menina, como um anjo enviado, bateu à sua porta, ela agradeceu profundamente. Deus existia para Mammãe.
Mammãe não olhou o relógio (nunca existiu), mas o batalhão de filhos famintos chegou pouco depois do meio dia, sentaram-se à mesa, comeram ruidosamente, e houve um que outro que reclamou que alguma coisa estava sem sal, ou sem molhos, ou sem gosto. Óbvio que Mammãe os mandou à merda, e se não o fez foi por cansaço ou pudor no linguajar.
Pouco depois a casa estava deserta. Mammãe com satisfação lavava a louça, feliz.
JARDIM DE INFÂNCIA
Mammãe colocou aquele ridículo chapeuzinho vermelho no filhinho. Era dia de avaliação do aluno, Mammãe estava nervosa, muito mais nervosa com o filhinho. Dia de avaliação era dia de Mammãe escutar “verdades” da professora: “Seu filho não presta atenção em aula, tem problemas de coordenação motora, não aprendeu nem a escrever o nome direito, seus dentinhos estão pretos”, e assim e por aí em diante aquela professora de jardim de infância deixaria magoada por um ou no máximo duas horas Mammãe. E depois disso Mammãe esqueceria, haveria o almoço para se preocupar. Há tempo vinha pensando em inventar pratos exóticos, como chuchu com folha de pinheiro, abacate com avenca, ameixa a dorê com molho de miolo de bode, sal, em um pouco de serragem de Angelim.
Chegaram no Jardim de Infância e deram de cara com a professora. Esta os chamou com um lindo sorriso pedagógico. Um breve cumprimento de oficiosas mãos, e o momento em que a professora pediu que o filhinho se retirasse, afinal a magister tinha coisas reservadas a dizer. O filhinho foi para um canto da sala, pegou lápis de cera e uma folha de papel e começou a desenhar Mammãe, (sem papai! sem papai!), filhinho, uma casinha com cerca de madeira, uma cachorrinha chamada Duquesa que não valia quase nada, e o resto dos irmãos, todos eles dentro da casa, maquinou, escondidos, sem apareceram no desenho. Era chato ter que dividir tão pouco.
Enquanto a mãozinha fazia a sua arte, as orelhas do filhinho tentavam escutar a boca da professora, as orelhas da Mammãe. O que havia de tão secreto naquela conversa?
E por ali não se passou mais que dez ou quinze minutos. Filhinho estava avaliado, o desenho quase acabado, faltava apenas a assinatura, mas filhinho mal sabia escrever o nome, melhor era deixar no anonimato. Mammãe o pegou pelo braço, e isso era reconfortante e quase emocionante, e foram para casa. Tirar aquele chapéu seria uma glória.
- Mãe, o que a professora disse? ...Diz, mãe ? Saiba que é mentira, seja lá o que ela disse.
- Fica quieto. Ela não disse nada. Eu já te matriculei para o próximo ano.
- Quer dizer que eu não vou para a primeira série?
- Não. Primeiro tem que aprender a escrever o nome.
Chegaram em casa. Mammãe pensava seriamente no chuchu com pinheiro, mas era só um tolo pensamento. Havia ainda bastante arroz, feijão. Tudo se ajeitava. Um dia filhinho se ajeitava. Por fim, Mammãe disse: senta na soleira, vou cortar duas laranjas do céu para ti.