quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O RATÃO




O RATÃO



Acontece que o ratão já vinha se insinuando há muito tempo. A família não admitia ou permitia mais um intruso. Afinal, éramos onze numa casa de dois quartos, assoalho surrado, divisória de madeiras, não havia lugar para o bichano que ameaçava o açúcar, o pão dormido e a saúde da gurizada. O negócio era armar uma cilada para o medonho, sem pudor, péin, na orelha, sem volta, morte rápida.
Quem teve a idéia foi o Tonico: um espelho na porta do buraco, reflexo invertido, a gente ficava de tocaia, e quando ele se refletisse, pimba!. Um tiro de arminha de pressão que eu nunca fiquei sabendo quem comprou, como sumiu, que fim levou.
Buenas. O Tonico era metido a atirador. É verdade que tinha uma mão só, perdeu a direita numa brincadeira com um jacaré fêmea do Zoológico. Ele sabia manejar aquela arminha como ninguém. Com o toco engatilhava, com a boca botava o chumbinho, e num clique habilidoso deixava a bicha pronta. A gente ficava olhando, admirado com tanta habilidade, o toquinho era bom. Nunca ninguém o viu matar um passarinho, só um estilhaço numa tartaruga do Velho Rio Guaíba, que ainda sobreviveu anos. Mas o Tonico, que o nome era Antônio, era o cara.
Mas volto só um pouquinho à ratazana, grandota, feia. Todo mundo sabia que o bichano andava por lá, roendo os cantos, rabiscando apressada os estreitos corredores. A gota d'água se deu – e se ela não tivesse feito isso acho que estaria até hoje lá – quando a encontramos enroladita num capote da velha Rede Ferroviária do Estado do Rio Grande do Sul, herança do meu pai. E pior, o capote estava em cima da cama. Foi uma afronta para a mãe. Reuniu os filhos e disse que queria ver aquele rato morto.
Pois bem, sabíamos dos seus hábitos. Ele saía do porão, entrava na lixeira dos fundos, e, pressentindo ameaças, corria de volta para o beco escuro, debaixo da casa. Era fácil pegá-lo, desconfiava era do tiro certeiro do Tonico. Mas vamos juntos.
E então naquele sábado ensolarado acordamos resolvidos a dar fim na fera. Armamos o espelho, debruçamos na janela, fizemos um revezamento de dois por dois, e aguardamos. Para dizer a verdade acho que foram três horas de silêncio absoluto em que o rato nem deu as caras. A arma engatilhada, o olho na mira, nada do bandido. Por decisão unânime, depois daquela longa espera, desistimos da empreitada. Digo mais, eles desistiram, por que eu era um piazito paciente que poderia ter ficado mais três esperando o intruso. Mas Luiz, Doro, Paulinho e o atirador, tomaram a sábia decisão de desistir. Forom jogar bola na praça Bartolomeu de Gusmão. Acho que o bicho pressentiu a estratégia e a artilharia pesada, fez as malas e partiu, de canto.
E só pra não dizer que minto: antes de me afastar e também correr a praça, juro que vi o malvado me dando um espiadinha do buraco...
E essa história é tão verdadeira quando o capote da Rede Ferroviária que guardo até hoje pendurado atrás da porta de jacarandá da sala.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O GORDO

O GORDO

O gordinho era simpático, tudo bem. Mas acontece que estávamos no três contra três, não tinha lugar. O gordinho era pereba, podia até entrar, dificilmente marcaria um gol ou faria uma jogada aguda. O gordo não jogava nada.
E,também, o que me confundia, é que ele não precisava ficar com aquela cara de chorão, cara de gordinho que quer mais um doce mas a mãe já tinha dito: só dois alfajores, Miguelito!
Eu não ia sair, nem parar o jogo para resolver a situação. Na praça era assim: pereba era o último a ser escolhido, mesmo se fosse o dono da bola ou se o pai estivesse olhando.
O gordinho estava quase entrando em quadra, eu me concentrava pouco nas jogadas. o Bitica já havia me xingado duas vezes. Na segunda, retruquei: cala a boca, Bitica, senão o gordo entra!
Vi os olhos do Miguelito arregalarem, mas, mentira, eu não ia botar o gordo. Na Escola Estadual Marechal Floriano Peixoto, a qual estudávamos na 4ª série, o cara, na hora da merenda, comia Pastelina e não dava uma para a gente. Nem pensar, no meu time ele não entrava.
Bom, mas eu também era um piá de bosta, que tinha lá minhas atitudes. Simulei uma desculpa qualquer e disse que o gordinho podia entrar no time deles. O Bitica fez beicinho. Eu, como eu era o capitão, fiz “xiiii” para ele, colocando o dedinho indicador na minha boca fina.
Como eu havia previsto, o gordinho não fez peso, não jogou nada e acho que nem passaram a bola para ele. Eu passei e repassei por Miguelito várias vezes, humilhei. Final do jogo,ganhamos fácil.
Nós, os seis, sentamos à sombra dum jacarandá da pracinha Florida. O gordinho, sem dar tchau, foi andando. Pensei: quatro horas... com certeza vai tomar o café da tarde. A poucos passos, vi o gordinho sacar de dentro da pasta, um pacotinho de Pastelinas. O Bitica, que também xeretou a cena, me incriminou, como que dizendo: viu!
Olhei o Bitica, o gordinho que ia distante, mastigando a Pastelina, meu ki-chute estourado no dedão direito. De novo o Bitica, e sentenciei: xiiiiiii, Bitica”

O TRAVESTI

O Travesti

Eu andava lá pelos treze anos, sexta série, colégio Floriano Peixoto, a mão já acostumada a procurar as partes íntimas do corpo adolescente. Na turma da oitava tinha um cara estranho, Gustavo, e aquela estranheza, botando todos os pontos nos lugares, é que ele era um guri bem mais bonito que os outros. Ele era uma mulher, e depois, bem depois, fiquei sabendo que ele trabalhava na noite, na Rua São Carlos, ali pertinho, fazendo ponto, se virando. Então eu começava a entender, definitivamente, com um pouco de surpresa ainda, que homens se sentiam mulheres, e que mulheres podiam se sentir homens, e vice-versa valsando valsa. Antes eu tinha a idéia que bichinha era um sem-vergonha. Demorei, mas entendi.
Acontece que na minha Zona, no Bairro Floresta, tinha a Priscila. A Priscila era uma beldade, morria-se por sua beleza. Ah, além de ser filha do seu Antônio, o dono da bodega mais próspera... Priscila gostava do Alfinete, filho do dono do Bar Caçulinha, mas isso não tem nada a ver com o caso.
Então a história era essa: um dia todos souberam que o Gustavo era travesti, que se virava. Na hora do recreio, numa partida de vôlei, Gustavo deu uma cortada no porongo da Priscila. Para quê! A loirinha subiu nos tamancos, e entre impropérios pouco meigos, Priscila sentenciou:
- Bicha!
Ah, aí fedeu. Gustavinho subiu nas sandálias e se agarrou nos cabelos da menina. A coisa foi histérica, mas eu me divertia. Lá pelas tantas o Kalil propôs:
- Vamos disputar na base da beleza. Hoje à noite, na São Carlos, eleição entre o Gustavo e a Priscila da mais bonita da Zona.
Concordaram. Só que Gustavo obtemperou:
- Minuto: na noite sou Angélica.
Lá pelas oito da noite, improvisaram uma passarela na rua. Tinha até apresentador. O pessoal que passava, parava, se integrando ao movimento. Não demorou muito, as concorrentes chegaram. Eu não tinha direito a voto, mas espichei o olhar muito obstinadamente na traseira da Angélica. A bunda haviam crescido uma barbaridade, seu rosto estava maquiado, a roupa era tigresinha, e seios! Dois, bem grandes. Confesso: a concorrente estava bela.
E a Priscila se apresentava mais linda do que nunca. E, no desfile, a bem da verdade, a Priscila deu um show. O pleito decidido com voto aberto, mão erguida: Priscila ganhou longe, acho que júri ficou com medo de votar na Mona. Festa acabada, eleição sacramentada, Priscila vencedora e Gustavinho chorando. Uma cena.
Fiquei com pena, mas também o concurso era desigual. E eu compreendia que a vida era desigual em todos os cantos, em tudo, e ali também.
Anos depois fiquei sabendo que Priscila casara, que tivera dois filhos, e que era feliz. Fiquei sabendo que Angélica também havia casado com um mestre de obra, famoso, que não tinham filhos, mas que eram muito, muito felizes.

OLHAR INFANTIL

OLHAR INFANTIL



Está sentado...Talvez um metro e dez de altura, vinte quilos de tanto comer balas, chocolates e bolachas gostosas. Cabelos finos e loiros, cabelo de milho. Um olhar grande e macio, que pousa nas coisas com interesse. Um olhar infantil. De nome Ricardo, mas a essa altura, o melhor era chamá-lo de Tato, com um tê só. Menino vivo. Fazedor de perguntas complicadas, que dão nó na cabeça da gente.
Há tempo que estava sentado na velha poltrona que um dia fora do avô. Olhos parados no infinito, boca entreaberta, olhando o mapa da cidade pregado na parede. De repente, a idéia: queria conhecer o centro da cidade onde morava. Porto Alegre. Ouvira falar que no centro havia de tudo: muita gente, muitas pernas trespassando. Que lá aconteciam coisas estranhas, que pra as crianças era difícil de explicar.
E Tato resolveu, pulando da poltrona, que era hora de enfrentar uma nova aventura. Foi ao quarto, colocou os tênis de passeio dos sábados e domingos, e saiu porta a fora, sem dizer palavra a ninguém.
Logo na primeira quadra, pensou: “Será que vou conseguir?”. E ele mesmo respondeu: só aventurando-se para saber.
Atravessou uma rua que já conhecia bem, e parou junto à parada de ônibus. Avistou o veículo, lá longe, e nisso assustou-se com uma mão que tocava no ombro dele. Arregalou os olhos e viu que era seu tio, que de sobrancelhas cerradas, perguntou:
- Aonde pensas que vais, guri? E ela estava muito braba.
- Vou passear no centro da cidade, quero conhecer.
- Ora, menino, que maluquice é esta! Você é um piazinho para andar por aí, sozinho. Não poderia nem ter saído de casa. Seu olhar era infantil.

- Olha, tio, eu até posso ser um menino, posso ter até o olhar infantil, mas sei me cuidar sozinho.
O tio estava furioso, mesmo assim disse ao menino que o levaria ao centro. E, no trajeto, sentados no banco do ônibus, explicou que olhar infantil é aquele que a gente só enxerga as coisas boas, um olhar ingênuo. Que no centro de Porto Alegre ele teria uma visão mais triste da vida. Ricardo, nem bola, olhava a paisagem. Pensava que lá as pessoas corriam muito para chegar aos lugares, e quando lá chegavam, alguém lhe entregava um papel que diria para correrem a outros lugares. E assim passavam muito tempo correndo, numa busca que não tinha fim.
Quase no centro, combinaram, tio e sobrinho, que um não faria perguntas um ao outro. O negócio era só olhar. Tato queria tirar suas próprias conclusões. Nisso o motorista gritou: “Centro! Desce todo mundo!”. Prontamente o garoto levantou do banco e desceu. Logo na descida do ônibus, ouviu Brigadianos que gritavam com vendedores de rua. Um desses vendedores estava algemado, e também gritava bastante. Depois avistou uma praça, - que o tio, intrometido, disse que ela se chamava de Praça Parobé. E logo apareceu outra praça, de nome Praça XV.
Pararam em frente a uma banca de jornal. Tato olhou para o moço que estava dentro da banca e perguntou:
- Senhor, possa dar uma olhada nas revistas?
O vendedor mal olhou para o menino, e respondeu rispidamente:
- Não pode folhear, não. Se não tem dinheiro, não olha. E vai embora que eu não quero pivete aqui!
Ricardo ficou assustado e largou uns soluços, quase chorando. Saiu a passinhos curtos, pensando: “tantas revistas e ele nem deixou eu olhar uma”. E saiu caminhando. Passou por uma avenida chamada Borges de Medeiros e atentou para uma velha gorda que gritava com madeirinhas na mãos:
- Olha a lixa! Olha a lixa! Lixa, senhora?
-Para que servem estas lixas, senhora? Perguntou o menino.
-Para surrar os meninos que fazem perguntas! Disse a vendedora agressivamente. E soltou uma gargalhada muito alta que até um cusco que andava as voltas saiu apavorado.
Mas o menino ia se acostumando com os xingamentos e barulheira. Desta vez não se assustou muito e defendeu-se como pode:
- Então a senhora não venderá nenhuma, pois as crianças não gostam de apanhar com estas porcarias. A velha deu uma olhadinha de desprezo para o garoto e continuou a gritar o nome do seu ganha-pão:
-Olha a lixa! Li-i-i-xas!
E foi andando o menino, sempre vigiado pelos olhos do tio, que a essa altura se divertia bastante com o sobrinho. E nisso o menino continuava a ouvir, enquanto muitas pernas vinham em sua direção, quase que o atropelando:
- A cobra! Olha a cobra, gurizada medonha. Vai dar a cobra na loteria federal. Co-o-bra!
- Mil setecentos e vinte e quatro! Quem nasceu nesta data! Vinte e quatro! Vai dar na loteria federal. Vê-ee-endo bilhete.
E ele, agora mais valente, observava com atenção as coisas: crianças, deitados nas ruas, fumando, dormindo em baixo das marquises, com roupas sujas. Outros meninos que paravam em frente a lojas que vendiam televisores; outros, já mais crescidos, com suas mãos de estendidas, pedindo esmolas, em busca de alguns trocados; e também homens de terno e gravata, que gritavam: “Jesus é o salvador!”, “Aleluia, irmãos!”; e outros homens e mulheres que com panfletinhos nas mãos diziam “corta cabelo, corta cabelo!”; e tinha também os vovôs e vovós que sentavam nas praças e tinham as caras tristes. E o menino admirava-se, seus olhos brilhantes enxergavam tudo com interesse, aquilo era muito real para ele: era a vida acontecendo.

E ainda tinha homens bem vestidos que gritavam números e nomes, e gente com santinhos nas mãos; mulheres que se esforçavam no rebolar, nas praças, com olhares carinhos aos homens que passavam. Elas que trocavam seu corpo por dinheiro, por mais uma manhã esperançosa. E as coisas assim corriam, voavam na frente do menino que se pasmava diante de tenta realidade.
Pensando nas coisas que via, deparou-se com uma rua muito colorida e chamativa. E em sua cabecinha aflorou uma esperança de ver algo que fugisse daquela rotina. Na rua dos Andradas só o que viu foram sapatos e pernas que se movimentavam agilmente em todas as direções. De repente, se assustou...
Com o medo a bater-lhe e o coração a palpitar pela boca, agarrou-se com firmeza a mão do tio e confessou:
- Estou com medo, tio.
O tio, que até então fazia o possível para não se meter nos pensamentos da criança, finalizou a proveitosa e real aventura do garoto:
- Tenha calma, menino. O que estás a presenciar hoje, nada mais é do que a vida acontecendo no centro de uma cidade grande. Fizemos parte de tudo isso.
E então o menino não olhou o cachorro, o velho encurvado, não deu bola para nada. Apenas disse, quase num sussurro:
- Eu não faço parte, tio...
E assim foram de mãos dadas, em direção ao ponto de ônibus. Na cabecinha de Ricardo, o pensamento era: “como é bom ser criança e ter sempre o olhar infantil”.

Para: Ricardo Carlos Bins Neto, meu sobrinho
Original em 16.03.1988.
Última revisão: abril de 2009.

CONTOS DA MAMMÃE

O CHIMARÃO

Botou água para esquentar. O cérebro cansado tentava refazer cálculos de um passado repleto de recordações. A vida valia mais do que uma água a ferver? Perguntou-se. Planos, projetos, dores musculares terríveis as quais o médico nunca pôde diagnosticar com precisão. “Mammãe, não identificamos suas dores”. Que dores eram aquelas? Quem estaria preocupado com suas dores, com seus amores, com seus andares?
E ninguém respondia naquela casa deserta. As coisas da casa talvez respondessem. A velha, enferrujada, panela de ferro, diria: É tarde, Mammãe, deixe de bobagem, esqueça isto. Naquela casa, a casa, no centro da grande cidade. Já viram: casa, mais casa, mais casa: dá cidade. Aquela casa, cansada hoje, viu correr pelo assoalho comido por cupins dez filhos famintos por vidas que viriam. Vidas que um dia, um dia em que a água fervia, esqueceriam que a mãe ainda colocava a água para ferver, água que deslizaria pela erva reaproveitada. “Põe a cuia na geladeira, comadre. No outro dia a erva ainda está boa”.
Chupava a lembrança. Lançava olhares nas dores mais alegres dos partos sofridos, seus. Os filhos nasciam. Umdoistrês... dez! “Dez filhos, Mammãe? O que a senhora vai fazer com todos eles, Mammãe?”. Poderia ter pensado o médico ao cortar o décimo cordão umbilical.
Mais um cevado. Quem quer tomar comigo? Não tem para quem oferecer. Casa triste. Foi alegre, foi. Pensa Mammãe, ao vento. Quem quer compartilhar com ela? Não se assuste. Não é tristeza o que sente. Devaneios misturados a razões de uma vida cheia de passados, repleta de perguntas. Felicidades? Claro, aos montes, mas agora não. “Mammãe, onde está minha gravata do uniforme do jardim de infância? Mãmmãe, pão com manteiga, de novo? Mammãe, eu não agüento mais esta casa! E nunca mais meu irmão é meu irmão!”.
O gás vai acabar. A água vai parar de ferver. Ela vai pensar em ligar o rádio e escutar as últimas notícias. Vai tentar saber se o mundo vai bem. Saber quais são as últimas medidas do governo, vai, e se a primeira dama vai curar-se da torção do entorse no tornozelo direito. Saber, por saber, se a cotação da moeda vai cair ou subir, e confirmar se o tempo vai mesmo melhorar. Não, não, não, pensará Mammãe. Tudo é uma grande mentira. A grande verdade é a água a desmoronar o monte verde, é o gosto amargo a descer goela abaixo. É sentir o coração insistir em perguntar, apertado, onde estão os dez filhos que saíram chorosos das suas entranhas, e chorosos partiram sem compartilhar o chá da comunhão.
- - Bebe, Mammãe, se não a água esfria.
- Compreendeste bem?


A BOLSA E O ESPEHO

Depois de velha, um fim-de-semana na praia, convite de um filho com alma, cairia muito bem, não? – Andam muito ocupados, mentia às outras velhas, nas rodas de chimarrão. Mammãe mentia muito bem. De todas, talvez fosse a que representasse melhor. Que diferença fazia dizer que os filhos tinham muitos compromissos. Ela tentava mentir bem. Mas para as amigas, já que eram amigas e sabiam que ela estava mentindo, que diferença fazia? Chega uma idade que mentir não tem mais graça.
E o convite veio, veio na última hora. Chegou com a ressalva de que não levasse muita coisa. O carro era pequeno e ainda havia de se resguardar o espaço do cão peludo que custou sabe-se lá quantas patacas. E ela ficou contente, ora. Não por causa do passeio, das horas trancadas no carro e das baforadas de fumaça. Definitivamente não. O que Mammãe queria ver era o mar. O que ela queria era olhar o mar, pisar na areia, ver o movimento incansável das tatuíras e a língua pesada do marisco a chupar a areia num coito insaciável. Queria sentar à beira da praia, sentir o vento bater nos seus cabelos e voltar a rever velhas fotografias de veraneios longínquos. Relembrar o papai chegando no velho sobrado de madeira, abrir a porta e dizer a todos que aquilo era o paraíso. Ouvir a voz da mãe mandar buscar pão e salsicha para fazerem a primeira refeição depois de uma viagem de cento e vinte quilômetros a cinqüenta por hora, no Ford bigode pretão.
Mammãe ia pensando nestas possibilidades. Abriu o armário e pensava nas roupas que levaria. Não esquecer: não levar muitas coisas. Poucas coisas, disse o filho. A pequena bolsa aberta na cama esperava as poucas mudas de cama. A bolsa aberta em cima da cama parecia dizer: não me encha muito Mammãe, o filhinho pode ficar bravo e nem levar Mammãe. O cachorro pode não gostar de dividir o pulguento banco com Mammãe.
Freneticamente, antes que fosse colocada uma única peça de roupa na bolsa, o telefone tocou. E o telefone falou muitas coisas. O telefone fala que não tem mais praia, que não tem mais marisco nem tatuíra. Que não tem mais fotos antigas, nem lembrança de vovô tomando suco de limão galego para matar a sede. Mammãe desliga o telefone, sabe que a ligação e de aparelho móvel e que custa caro para o filhinho,-ele já disse em outras oportunidades, repetidamente. Mammãe poderia ficar triste, mas ela é a pessoa mais forte da família e já ouviu tantas mentiras que uma a mais, uma a menos, não ai fazer diferença no balanço final. Mammãe sabe que a bolsa aberta vai retrucar abrindo o seu fecho: eu não te disse! A voz do telefone tem compromissos inadiáveis. Acho que desta vez até o cãozinho vai ficar de beicinho.
E Mammãe vai guardar a bolsa no armário e vai dobrá-la com muito carinho. Sabe que a bolsa é rude e não tem meias palavras, e que se amam por sua completa sinceridade. E antes de dormir, Mammãe vai sentar-se em frente à penteadeira e encarar aquele que lhe pergunta todas as noites, antes do descanso: quem te fez assim, velha?




A MAÇÃ

Levantou-se lentamente do sofá. As pernas cansadas exigiam cautela com os movimentos mais simples. Caminhou até a cozinha, e mesmo sem ligar a luz, tateou a maçã desejada para ser degustada antes do início da novela da noite. Pegou uma faquinha de ponta e voltou ao seu lugar predileto: o cantinho do surrado sofá. Descascou com singeleza a saborosa fruta. Ia pensando, mesmo enquanto o personagem principal esbofeteava a atriz secundária, como era elementar aquela maçã. Mammãe sabia escolher, cortar e saborear uma maçã. Dava muito valor à fruta, aos seus poderes milagrosos de fazerem sempre o bem, mesmo que a fruta estivesse podre. Mammãe sabia que mesmo as frutas podres podem ser boas. Mammãe sabia o que era bom.
O telefone tocou, estridentemente. O telefone sempre interrompe alguma coisa: um simples pensamento, sobre maçãs, por exemplo. Aquela campainha penetrava seus ouvidos e prenunciava vozes chorosas. Antes que desse a segunda chamada, Mammãe levantou o fone do gancho, e com sua voz arrastada tentou saudar um alô otimista. Do outro lado, a voz desesperada iniciava um monólogo enfadonho. Mammãe escutava já gulosa pela primeira dentada. Mas Mammãe era educada, não convinha, diante de tanta notícia ruim, divertir-se e deleitar-se com a suculenta fruta. Esticou o braço e descansou a frutinha no acento lateral, noites mais noites vazio.
E Mammãe ia concordando, ia dizendo “ãrrã” de segundo a segundo. Ia informando que ali estava, ouvindo, entendendo, sendo solidária e compreensiva com tudo o que estava se passando com a pessoa do outro lado da linha. Mesmo porque Mammãe já era velha demais para não concordar com alguma coisa. Mammãe estava ali, sentadinha, sozinha, justamente para isso: compreender.
A voz continuava. Expunha situações desagradáveis, desafetos, trocas de rudes palavras. A voz era interminável. A queixa parecia não ter fim. Mammãe prestava muita atenção: um ouvido na voz, um olho na reconciliação dos personagens e na maçã cortada, pronta para a primeira dentada. Mammãe nunca soube ao certo onde tudo aquilo ia acabar. A voz, a novela, a maçã. Ela tinha esperanças, remotíssimas, que fossem nesta ordem: a voz diria boa noite, Mammãe; a maçã sulcaria: morda-me com prazer, minha velhinha; e a novela acabaria numa cena dramática em que a filha descobria-se adotiva, triste e traída. Mammãe sempre teve muitas esperanças na vida. Não destas esperanças de ganhar na loteria, ficar rica, comprar uma dentadura de ouro. Mammãe tinha esperanças na vida, nas pessoas, nas coisas mais simples.
Tudo se deu ao contrário. A última cena do capítulo Mammãe perdeu. A voz do telefone avisou que estava indo atender a porta. Trancaria com mil cadeados a entrada do apartamento para que o reclamado, o irresponsável não pudesse entrar. A voz ainda mandou que Mammãe ficasse de plantão, caso acontecesse alguma coisa, o telefone voltaria a berrar pedindo socorro. E a maçã, enquanto o tempo passava, foi perdendo o viço, o suco, a sedução da dentada gostosa.
Mammãe adormeceu no sofá.
Lá, a voz abriu a porta e reconciliou-se num piscar de olhos, depois de duas palavras do reclamado. Mammãe, boquiaberta, teve pesadelos terríveis naquela posição incômoda. Sonhou coisas insólitas e desagradáveis.
Na manhã seguinte, Mammãe deparou-se com o primeiro noticiário da tevê, com o fone quieto, domado, dócil, repousando na base, e com a maçã escurecida pelo tempo. Mammãe não teve dúvidas, deu aquela desejada dentada, sentiu o gosto já apodrecido pela noite. Antes de levantar-se e iniciar a luta contra os ossos e músculos endurecidos, pensou: uma maçã podre tem o seu valor, limpa os intestinos.


A COMADRE DA MAMMÃE

Às duas horas da tarde, principalmente quando chovia, Mammãe ia visitar a comadre que morava do outro lado da rua. Antes de sair, tinha o cuidado de contar, com a ajuda dos dedos, onde tinha mandado os filhos. Uns tinham ido à escola, outros estavam brincando na pracinha, provavelmente jogando bola, e os mais velhos trabalhando, ganhando a vida. Mammãe lavava e costurava para fora, e como a renda não chegava para alimentar os muitos filhos, achava por bem, e muito justo, mandar os filhos mais velhos ao trabalho.
Mas Mammãe, apesar de tudo o que acontecia no mundo: guerras, brigas, ganância, discussões, disputas, discordâncias, dissonâncias, discrepâncias, do pâncreas, do fígado, do rim e do ruim, lá pelas três horas da tarde, ia visitar a comadre, ali, do outro lado da rua Florida. Lá se reunia com comadre, e também a mãe da comadre, que andava lá pela casa dos noventa anos, e quiçá a mãe da mãe da mãe da mãe, da... Fantasma existem, pois não? Ainda mais que tratavam de assuntos tão graves.
Ir à casa da comadre não era ir cotidianamente em um lugar e ver as horas correrem. A casa da comadre era bela, bem pintada, móveis modernos, relógio de cuco, quartos fechados à chave, televisão com controle remoto, quadros pintados a óleo. A casa era rica, um luxo. A casa era um sonho para Mammãe. A comadre era rica, também, de coração. E lá mammãe se sentia uma pessoa respeitada pelo simples fato da comadre perguntar-lhe, todos os dias:
- Olá, Mammãe-comadre, e essa vida?
E como essa pergunta era importante para mammãe.
E seguiam-se, talvez por duas horas, - e enquanto isso seus filhos ganhavam o mundo - conversas das mais diversas, simplicidades do dia-a-dia. Quando Mammãe voltava para casa, ela se sentia mulher, responsável pelo bando de filhos, responsável pelo destino de cada um, responsável pelo futuro, dela e dos seus.
A comadre, com os anos, tornou-se a pessoa importante para Mammãe. E de todas as coisas que elas falavam naquelas sevadas tardes maravilhosas, ora embaixo do pinheiro no quintal florido, ora na aconchegante cozinha com exaustor, diziam respeito às receitas de comida, principalmente as receitas de chimia. As comadres poderiam passar uma vida inteira falando em chimias de morango, de abóbora, de pêssego. Chimias coloridas e saborosas. Chimias doces, feitas com lágrimas, suores e amor, feitas à beira do fogão à lenha.
A comadre era a melhor amiga da Mammãe. Mammãe jamais acreditou que um dia sua melhor amiga ficaria triste, esquecida das coisas, calada, sem poder dizer palavras, pois simplesmente a memória abandonou comadre. Mammãe ficou triste ao saber que a comadre já não poderia lhe perguntar:
- Vamos tomar um chimarrão?
E ainda Mammãe foi muitas vezes na casa da comadre. E por muitas tardes conversou sobre o custo do e o custo da. Mammãe não se importava de ficar falando enquanto a mammãe da comadre ia ao quarto chorar pela doença inesperada da filha.
Um dia a comadre, já acamada, deu um último suspiro. Mammãe viu este último momento, mas não quis chorar naquela casa que era tão linda. Mammae foi para sua casa, buscou na figueira os figos mais verdes que havia, colocou uma boa lenha no fogão, e numa panela pura, queimada pelo tempo, iniciou uma deliciosa chimia. As lágrimas de Mammãe eram muitas e pingavam na panela, misturavam-se à chimia. Aquela foi a chimia mais amarga de toda a sua vida. E todos os filhos a comeram, agradecidos.

BIFE COM CEBOLA

Mammãe cortava a cebola em pequenas fatias. Ao Meio dia teríamos bife com cebolas fritas. À medida que a faca cortava as fatias, o cheio forte da cebola chegava aos olhos de Mammãe, junto às lágrimas imperceptíveis, os pensamentos, as idéias, as coisas. E por incrível que possa aparecer: havia felicidade em tudo isso.
Mammãe poderia ter sido tudo na vida. Aos vinte e dois anos chegou à conclusão que queria ser mãe, dona do lar: varrer todos os dias a casa, bater o tapete poeirento na árvore da frente de casa até que o pó se perdesse pela rua dos seus vinte anos em diante. Mammãe poderia ter sido médica, advogada, bailarina de casa noturna, vendedora de cosméticos, líder comunitária, representante do Brasil na ONU. Mas não, que esperança... Queria ser do lar. E Foi.
Conheceu o marido por acaso, sentada, oferecida, em frente ao armazém do seu pai. Ele passou, olhou para suas grossas coxas, e seis meses depois a Igreja católica selava aquele matrimônio que duraria não mais que vinte anos e muitos filhos.
Mammãe cortando cebola parecia chorar. Ela estava muito feliz, destas felicidades tímidas, solitárias, estranhas. Tinha sua própria casa, os meninos e as meninas se criando, estudando, trabalhando, enfrentando. Ela cortando cebolas, iguais há vinte anos atrás. Óleo na frigideira chamava: vem cebola, vem! Mammãe sempre fora do lar. Sabia a hora exata de colocá-la para fritar, sabia a hora exata de abrir as grossas coxas para o marido, amá-lo naquele exato instante enquanto fazia as contas para saber quanto tempo faltava para ele deixá-la.
Poderia ter sido qualquer coisa nesta vida, preferiu o mais difícil, o menos egoísta, a mais emocionante das profissões: ser mãe uma vida inteira. Saber a hora exata da cebola, do óleo e da frigideira. Saber a hora exata de quando era meio dia, estômago faminto, olhares atônicos a perguntarem:
- O que temos hoje, Mammãe?
- Hoje temos bifes acebolados, filhos, responderia Mammãe, durante muitos faceiros anos da sua vida.

ROSTOS DA MAMMÃE

Mammãe não tinha mais de dezenove anos. A vida ainda ia mansa, aprendia a fazer doce, caprichava no caderno do ginásio, usava saia, exibia as coxas eram grossas. Não havia ainda sérios pretendentes, mas já cruzavam olhares mais intensos em seus seios de italiana faceira.
Bem nessa época, onde tudo era azul, veio o primeiro sinal da doença eterna. Bateram na porta da frente, Mammãe foi correndo atender. Eram um homem, meia idade. Contou-lhe uma história curta e triste, queria um dinheiro para retornar a sua cidadezinha. Enquanto o homem falava, Mammãe decodificava, olhava cegamente para aquele rosto vincado, murcho, sofrido. Correu a cristaleira da mãe e pegou algumas moedas. Na entrada, baixando os olhos, Mammãe entregou o dinheiro, fechou a porta e voltou ao sofá.
Poderia dizer, narrando, que Mammãe chorou muito pela situação. Mas não. Não foi bem choro que se viu. Ou se foi, foi coisa interna, do coração. Mammãe sentou no sofá e ficou repensando aquele rosto triste, pedinte. Aquela cara curtida, humilhante.
Depois daquele dia, quantas coisas aconteceram. Pode-se dizer que Mammãe foi, até o último suspiro de vida, feliz. Bem feliz. E também se pode afirmar que Mammãe viu naquele rosto toda uma condição humana, toda uma contrariedade, um paradoxo. E Mammãe guardou este segredo e levou consigo, no seu coração, para outro mundo. E Mammãe ensinou que certas coisas não se aprendem ensinando. Certas coisas vêm da alma, basta um simples olhar, um breve toque, um aspirar mais atento e pronto: aprenderam-se coisas que só a compaixão pode ensinar. Mammãe sabia coisas que não podia ensinar.






A COMIDA



Se naquela época Mammãe tivesse um relógio eu iniciaria assim: “Mammãe olhou o relógio, faltavam poucos minutos para o meio-dia”. Mas naquela época Mammãe não tinha, e seguimos assim: pelo movimento da calçada, Mammãe ficou desesperada, logo chegariam seus filhos do trabalho, famintos, loucos por um prato quente de comida. Como dizer a eles que o dinheiro não deu para comprar um pedaço de carne, o arroz e feijão, uma abóbora, um pimentão para rechear? Há certos momentos da vida em que já não há mais justificativas, deixa-se a coisa andar por si só e seja o que Deus quiser, poderia ter pensado Mammãe naquela manhã.
Mas ela não pensou nisso. Os filhos menores brincavam no pátio, esqueciam do estômago, inventavam histórias onde pedras eram carros, palitos eram gente, paninhos:camas, papelões:casas. Tudo uma grande invenção. Deus estava admirado, certamente. Mammãe não. A senhora pensava apenas no que faria com um punhado de grãos. Quem sabe pedir bexiga ao dono da casa de carnes, à vizinha ao lado, ao padre. Que nada, sempre lhe faltou coragem para este tipo de coisa, o orgulho era a única virtude intacta daquela que sempre segurara a situação.
E como num conto de fadas, ou como obra do destino, ou justiça dos deuses, ouviu-se um toc-toc na porta da frente. Era a filha da costureira que vinha trazer o dinheiro dos vestidos alinhavados nas madrugadas de trabalhos de Mammãe, ou nos intervalos dos serviços domésticos. Serviço que ela fazia para driblar o tempo, os pensamentos, as mentiras da vida. Mammãe sempre teve mania de ficar olhando o infinito, como se ficasse, concentradíssima, medindo o espaço entre o nada e coisa alguma. Sempre Mammãe foi muito de pensar, sempre, sempre. Que coisa!
A menina trazia o dinheiro salvador. Mammãe mandaria um dos meninos na bodega da esquina e resolveria sua aflição. Mammãe nunca deixou de acreditar em Deus. E mais agradeceu do que pediu. Se aquela menina não tivesse batido na porta e não trouxesse o dinheiro, Mammãe não pediria e Deus. Mas como a menina, como um anjo enviado, bateu à sua porta, ela agradeceu profundamente. Deus existia para Mammãe.
Mammãe não olhou o relógio (nunca existiu), mas o batalhão de filhos famintos chegou pouco depois do meio dia, sentaram-se à mesa, comeram ruidosamente, e houve um que outro que reclamou que alguma coisa estava sem sal, ou sem molhos, ou sem gosto. Óbvio que Mammãe os mandou à merda, e se não o fez foi por cansaço ou pudor no linguajar.
Pouco depois a casa estava deserta. Mammãe com satisfação lavava a louça, feliz.




JARDIM DE INFÂNCIA


Mammãe colocou aquele ridículo chapeuzinho vermelho no filhinho. Era dia de avaliação do aluno, Mammãe estava nervosa, muito mais nervosa com o filhinho. Dia de avaliação era dia de Mammãe escutar “verdades” da professora: “Seu filho não presta atenção em aula, tem problemas de coordenação motora, não aprendeu nem a escrever o nome direito, seus dentinhos estão pretos”, e assim e por aí em diante aquela professora de jardim de infância deixaria magoada por um ou no máximo duas horas Mammãe. E depois disso Mammãe esqueceria, haveria o almoço para se preocupar. Há tempo vinha pensando em inventar pratos exóticos, como chuchu com folha de pinheiro, abacate com avenca, ameixa a dorê com molho de miolo de bode, sal, em um pouco de serragem de Angelim.
Chegaram no Jardim de Infância e deram de cara com a professora. Esta os chamou com um lindo sorriso pedagógico. Um breve cumprimento de oficiosas mãos, e o momento em que a professora pediu que o filhinho se retirasse, afinal a magister tinha coisas reservadas a dizer. O filhinho foi para um canto da sala, pegou lápis de cera e uma folha de papel e começou a desenhar Mammãe, (sem papai! sem papai!), filhinho, uma casinha com cerca de madeira, uma cachorrinha chamada Duquesa que não valia quase nada, e o resto dos irmãos, todos eles dentro da casa, maquinou, escondidos, sem apareceram no desenho. Era chato ter que dividir tão pouco.
Enquanto a mãozinha fazia a sua arte, as orelhas do filhinho tentavam escutar a boca da professora, as orelhas da Mammãe. O que havia de tão secreto naquela conversa?
E por ali não se passou mais que dez ou quinze minutos. Filhinho estava avaliado, o desenho quase acabado, faltava apenas a assinatura, mas filhinho mal sabia escrever o nome, melhor era deixar no anonimato. Mammãe o pegou pelo braço, e isso era reconfortante e quase emocionante, e foram para casa. Tirar aquele chapéu seria uma glória.
- Mãe, o que a professora disse? ...Diz, mãe ? Saiba que é mentira, seja lá o que ela disse.
- Fica quieto. Ela não disse nada. Eu já te matriculei para o próximo ano.
- Quer dizer que eu não vou para a primeira série?
- Não. Primeiro tem que aprender a escrever o nome.
Chegaram em casa. Mammãe pensava seriamente no chuchu com pinheiro, mas era só um tolo pensamento. Havia ainda bastante arroz, feijão. Tudo se ajeitava. Um dia filhinho se ajeitava. Por fim, Mammãe disse: senta na soleira, vou cortar duas laranjas do céu para ti.

A MENINA E A BORRACHA

A MENINA E A BORRACHA


Na pequena casinha de janelas vermelhas, morava uma menina muito bonita. Aline parecia uma boneca que caminhava e falava. Isso por seus cabelos loiros, olhos azuis, uma princesinha dos contos de fada. Andava sempre com o seu vestidinho azul e branco, tipo jardineira, e por nada deste mundo largava suas panelinhas de fazer comida de faz-de-conta.
Num dia feio de muita chuva e ventos, Aline, curiosa, observava seu tio no canto da sala onde brincava. Resolveu,então, aproximar-se dele com a intenção de saber por que havia tantos papéis em sua mesa. Por este motivo, esqueceu suas panelinhas e caminhou em direção a ele. Logo ao chegar perto da mesa velha e escura, atentou para um pedaço de borracha colorida que estava junto a papéis de escritas miúdas e confusas. A menina, sedenta em conhecer coisas novas, pegou a borracha e ficou um tempão a olhá-la. Aquele objeto macio trouxe perguntinhas à cabeça da menina. Assim, com sua voz suave perguntou ao tio, que a observava também curioso:
- Titio, o que é isso?
O tio, esquecendo-se das folhas de escrita confusa que estavam em cima da mesa, sussurrou numa voz cavernosa:
- Isto se chama borracha, e serve para apagar tudo o que há de errado no mundo!
Com esta resposta, Aline pensou numa nova brincadeira, uma brincadeira para nenhuma criança de três anos botar defeito: apagar tudo o que houvesse errado no seu mundo de gente pequena. Com um passinho curto e gracioso, a menina colocou em prática sua nova diversão. A dúvida ficava por onde começar. Nesse momento lembrou-se da mesa escura e velha que seu tio usava; iniciou, assim, apagando todas as madeiras que existiam na casa. Com isso, lá se foi a mesa feita de madeira nobre. Depois a menina apagou os muros e concretos que separavam as casas, e, conseqüentemente, as pessoas. Apagando o portão que servia de entrada para a sua casinha, aliás, ex-casa, pois já havia sido apagada pela menina, encontrou as ruas e começou a apagá-las também. Ela não queria mais ver aqueles carros e caminhões que faziam muito barulho e largavam tanta fumaça preta poluindo tudo. Ao chegar com sua borracha na pracinha, apagou todas as crianças que lá brincavam: foi egoísta, quis a praça só para ela. Mas pensando bem, teve que apagar a própria praça, pois estava tão suja!
E continuou a caminhar e apagar todas as coisas que o seu mundo não aceitava. Subindo numa escada alta, apagou as nuvens escuras que deixaram aquele dia tão feio, e depois apagou o sol e por fim o céu. Ao descer da escada, a menina olhou para baixo e viu muitas pessoas que andavam apressadamente nas ruas que ainda não tinham sido apagadas. E olhou com tristeza aqueles que moravam em casa feias, sujas e pequenas; e também ficou triste com aqueles que moravam em casa grandes, lindas, floridas de belos girassóis Aline ficou confusa e resolveu apagar todas as pessoas grandes e as coisas que os cercavam.
Quando a noite chegou, e menina subiu na mesma escada e apagou, dessa vez, a luz, os astros e o além que os homens imaginam existir. Ao descer novamente a escada, só avistou o chão da terra. Com rápidas braçadas, apagou todo o resto, tudinho que ainda restava. Fora, assim, um dia cansativo para a menina Aline; fechando os olhos, pegou no sono. E como se não bastasse o apagamento de tudo, com um resto de borracha que havia sobrado, apagou os sonhos que ainda restavam em sua cabecinha.
Depois de muito dormir, despertou para um mundo mergulhado na escuridão. Pois o nada era tudo o que restara de sua brincadeira. A bonequinha de cabelos loiros pulou da cama com seus passinhos miúdos e indecisos. Com lágrimas, pensou: “-Se tudo o que existiu no mundo não significava nada, como é triste descobrir que do meu mundo não sobrou mais nada. Tinha tudo e pensava que não tinha nada. Agora, o nada nem mais nada é”.
Enquanto pensava nisso, e as lágrimas caindo dos grandes olhos azuis, avistou um vulto que caminhava em sua direção. Logo ficou com medo, mas não demorou muito e identificou que quem vinha era o tio, com os seus papéis em baixo do braço. A menina saiu correndo e o abraçou alegremente aquele que esquecera de apagar. E o tio, por poeta-sonhador que era, tirou do bolso da camisa lápis de cores e convidou a menina para desenhar, novamente, o mundo que um dia Aline apagou.


Escrito em 17 de abril de 1987
Para Aline Zeller Branchi, minha sobrinha
Digitado em Março de 2005.

A MENINA DO ANEL

A MENINA DO ANEL




Cidadezinha do interior. Mundo diferente: casas espalhadas nos morros. Vista de cima, muitas cores a embelezar um mundinho distante. Quem a olhasse de longe, diria se tratar de uma grande árvore de Natal, com suas cores e encantos. As casinhas coloridas pareciam bolinhas de Natal, enfeitando um mundo tranqüilo, calmo, bonito para os olhos e para alma.
Pois era inverno e o minuano, vento gelado por demais, soprava numa intensidade que o povo sentia nos ossos. A maioria dos moradores se protegia em suas casa, à beira do fogão à lenha, enquanto o pão ia assando e a água esquentava para o chimarrão. Em uma ruazinha em particular, chamada Florida, morava uma família italiana, alegre. A casa era modesta, mas a gente percebia que ali havia felicidade pela disposição dos móveis, pelas violetas na janela, pelo quadro na parede, pelas frutas na bandeja. Além do pai e da mãe, havia duas meninas: Bruna e Maria Isabel. A primeira era uma menina dócil, grandes olhos verdes e sonhadores; Maria Isabel, a menor, um par de anos, agitadinha, atenta, e um sorriso que não tinha fim. Bruna, pela manhã, bem cedo, entregava os pães que sua mãe fazia. Encomendas que davam uns trocados extras para a família. Bruna já novinha, sete ou oito anos, percebia que aquele trabalho era duro, que melhor era brincar de boneca com as meninas, mas fazer o quê! À tarde, ia para a escola. Maria Isabel, digamos uma menininha de muita energia, olhar atento, curioso, passava o tempo correndo, mexendo, comendo, vivendo cada minuto. Gostava de se enrolar em velhos novelos de lã, picar jornais já lidos, colar pauzinho de picolé: construir histórias. Seus brinquedos eram aqueles que ela inventava, e assim ela ia criando o seu mundo.
Bem, mas tinha o vento minuano que soprava com fúria naquele dia. Um dia especial. O vento insistia em alguma coisa...
O vento tornava-se a cada instante mais violento e gelado, logo trouxe consigo uma chuva miúda, cortante. O povoado começou a ficar assustado, nunca tinham visto tanta insistência num vento chato, e agora molhado. Vento molhado. E logo vieram raios que desenhavam no céu rios e veredas eletrizantes. A angústia dos moradores aumentava.
A família da rua Florida também ficou preocupada. A mãe, nervosa, olhava pela janela na esperança de que o marido voltasse mais cedo. Ele era funcionário do governo, e sabe-se lá onde andava. Bruna escondia-se entre os cobertores, abafando, assim, o barulho das trovoadas. Lá, entre as cobertas, pensava: “deve ser guerra entre anjos e diabinhos, lá em cima”. Maria Isabel, sempre curiosa, ao lado da mãe na janela, olhava o céu, e se divertia. Estava fascinada com as transformações. Ela sorria, (coisa que só ela entendia).
E a coisa piorava. A manhã era uma noite chuvosa, ventosa, horrível. No relógio da praça central, a mãe observava que eram dez horas. Foi aqui, segundo se comentou depois, que o episódio aconteceu.
Olhando para o céu, via-se as nuvem chocando-se entre si. O medo no povoado era grande. Nas casas, recolhidos, os habitantes diziam que era o fim do mundo, outros amenizavam falando que se tratava de um espetáculo da natureza. De fato todos estavam pasmados, paralisados, esperando o que ia acontecer lá no alto. O meteorologista da cidade foi consultado, disse que era coisa passageira, logo tudo se acalmaria. O tempo passava em câmara lenta, as nuvens aglomeravam-se numa massa que mais parecia um chumbo gigante, com figuras estranhas. Os fiéis dirigiam-se à igreja. O padre, à porta, acalmava os cordeiros dizendo que tudo Deus podia, e o que viesse a acontecer seria para o bem de todos. Para aqueles que não acreditavam em Deus, tudo se dirigia à catástrofe: o morro ia desabar, como certeza.
E a sensação de morte persistia no assustado povoado. Havia gente que já emendava uma promessa e jurava não pecar. A desgraça os deixava mais humildes e unidos. Nas casas, as mães protegiam os filhos, colocando-os nos colos. Cachorros encolhiam-se nos cantos, tinham aquele olhar piedoso. A destruição era certa, as nuvens gigantes e horrorosas desabariam e acabariam com tudo. O tempo passava, era tarde para qualquer pedido de desculpa, o relógio da praça marcava meio dia.
O dia fechou por completo. No céu, as nuvens unidas cada vez mais, formavam uma concha medonha, logo aquilo ia explodir. A concha foi descendo, com certeza ia engolir a cidade. Um morro devorado, tragado. Na casinha da rua Florida, o medo era igual. Mesmo com o marido em casa, quase todos estavam apreensivos, menos a menina Maria Isabel, que só não estava à janela porque o pai a chamara. O fogão à lenha aquecia a todos, o pai até tentava contar uma historia para distrair as meninas, mas com as trovoadas, perdia o rumo . Bruna saíra do cobertor logo que sentiu coragem. Maria Isabel, sempre sorrindo, quando dava, espiava a concha. Talvez ela esperasse alguma coisa...
E o tempo passava, todos naquela apreensão. No relógio da praça avistava-se seis horas da tarde. O povoado sentiu um cheio de flor no ar, cheiro de jasmim, um ar perfumado. Era um vento que trazia esperanças, mesmo para quem olhava aquela cápsula negra lá no céu. Houve um ânimo geral. Todos ficaram confiantes, aos pouco saíam às ruas. Olhavam como que embasbacados pro céu prateado. Teve quem dissesse que eram os marcianos, que a nuvem negra era um disco voador em visita a terra. A brisa cheirosa oxigenava a todos, tranqüilidade pura. Uns achavam que flutuavam, pairavam, sonhavam.
A concha começou a emitir um suave som, uma música misteriosa, numa propagação de timbres harmoniosos que, misturados ao vento com cheiro de jasmim, davam a impressão de que uma chuva de notas invadia e envolvia o lugarejo. Os sons eram serenos, simples, agradáveis. A população, por um momento, paralisada, esquecia o medo e deixava-se bailar com a chuva de melodias. Era possível dizer que estava tudo suspenso e dançando ao mesmo tempo. As pessoas, provavelmente, não acreditavam no que estava acontecendo, mas se deixavam levar.
E foi assim que num instante, de repente, houve uma súbita transformação na nuvem assustadora. Sempre com aquela musicalidade, com a chuva cheirosa, a concha começou a retrair-se até transformar-se numa flor. A cor preto-cinza perdeu a coloração e deu lugar a um vermelho ávido. O objeto parecia uma rosa escarlate. A metamorfose, se assim pode-se dizer, não parou por aí. A rosa tornou-se uma figura mais arredondada até tornar-se um elo; este foi afinando cada vez mais. O povo, cá em baixo, ficava entre o respiro e o suspiro, poucas palavras. Apenas uma criança sorria observando tudo aquilo através da janela...
Formou-se no céu um lindo anel, de um brilho ofuscante. Junto à música contagiante e o vento cheiroso, tocante, tornava a cidade um lugar fantástico. Todos os corações batiam o mesmo frenético tum-tum, tudo era admiração. De dentro do anel brotou uma luzinha amarela, feixe que cresceu e iluminou toda a nuvem escura. Num tom diferente, um raiozinho desceu na direção do povoado. A luz descia, lentamente. Disseram que era um presente que a cidade recebia dos céus. Aos poucos o povo ia falando, comentando a cena, arriscavam conversas enquanto o raiozinho vinha calmo. A luz, feixe amarelo, descia triunfal. Faltando poucos metros para tocar o chão da cidadezinha que mais parecia uma árvore de natal, o raio parou. E o mundo também parece que se esqueceu de girar. O povo, o raio, tudo estava parado. Num relâmpago que produziu um clarão ofuscante, um raiozinho foi atirado em direção à casa da família da rua Florida. O povo se dividiu entre olhar a flor e raio. O raiozinho, então, retornou rapidamente para o raio maior, que retornou para a flor, lá no céu. Por fim, ouviu-se um estouro apoteótico de fogos de artifício que iluminou com mil cores a noite daquela cidade. O espetáculo acabara. A platéia ainda esperou um bis, -que não veio-, e esqueceu de bater palmas.
Bem, era uma cidadezinha plantada num morro. Por ser pequena, pouco habitantes, logo queriam saber o que havia acontecido. Verificaram que o raio atingira a janela da casa da rua Florida. Da rua, perguntavam a família o que havia acontecido, se havia alguém ferido. Mãe e pai imploravam para que fossem embora, que nada de anormal acontecera, que os deixassem em paz. Mas a curiosidade insistia. Chamaram o delegado para que desse uma busca na casa, que ele procurasse vestígios do raio, e quem sabe algo valioso, o tal presente lá do céu. Inútil. Não havia motivo para tanto. O homem da lei até entrou na casa, mas nada encontrou. O povo, aos poucos, foi sossegando, recolhendo-se a suas casas. Isso já era tarde da noite, a fadiga vencia a novidade. Naquela noite muitos sonharam com luzes.
Depois do tumulto, a família da rua Florida, ainda apreensiva, procurava vestígios do raio que quebrara a janela. Pai e mãe se revezavam nas buscas. Em certo momento, já muito cansados, deram de ombros e resolveram dormir. Quem sabe tudo não passara de um sonho, pensou a mãe. Bruna deitou-se com os pais, ainda havia um resquício de medo. Maria Isabel, ao contrário, ainda guardava um sorriso enigmático quando seus pais a olhavam. De momento a momento, estendia a mão esquerda na intenção de mostrar os dedos. Depois de muito insistir, sua mãe percebeu que a menina tinha um lindo anel prateado no dedo médio. Um anelzinho muito parecido com aquela nuvem que se formara às seis horas da tarde. Foi um choque para a família. De onde havia saído o anel? O raiozinho havia atingido a menina, presenteando-a com o anel, logo concluíram. Os pais tentaram tirar o elo num esforço inútil, estava como que colado à pele. As dúvidas persistiram: que significado havia naquilo? Era um mistério.
Não se sabe por quem, mas não demorou muito e a notícia do aparecimento do anel no dedo da menina surgiu de boca em boca. Para a cidade aquilo era fantástico. Formou-se fila na casa da rua Florida, só para ver o anel no dedo da menina: o povo queria mais detalhes. Os pais, a todos, diziam que nada sabiam. Tudo o que afirmavam era que o anel não saía de jeito nenhum.


***


Os anos se passaram e a cidade foi progredindo, crescendo. As casas eram muitas e a população triplicou. Menina e anel cresceram juntos, estranhamente o anel também cresceu, nunca chegou a apertar o dedo da menina-moça.
E a cidade foi perdendo aquele jeito do interior. É verdade que ainda parecia como que plantada em cima do morro. A árvore de natal estava cheia de adereços. Mas a agitação era maior nas ruas, o morro já não tinha encantos, o verde sumira. Os costumes foram mudando: a civilização também chegou pela TV, o que foi um desencanto para muita gente. Só jornais periódicos havia três, a comunicação tomava conta das informações. Agora existia departamento disso e daquilo, secção disso e daquele outro, indústrias, fábricas, favelas, famintos. Capela, igreja, catedral, visita anual do cardeal. Sábios, feiticeiros, esotéricos, louco de dar nó. Violência, violentados, vítimas e vadios. Uma cidade produtiva, pólo de alguma coisa. Homens e suas máquinas incríveis invadindo os espaços vazios. Terra disputada à faca; água retirada do solo sem pudor. Crise, índices de inflação, desemprego. Por isso e mais um pouco, a câmara dos vereadores deu-lhe um nome definitivo: cidade valorosa de Morro Alegre.
E Maria Isabel acompanhou toda aquela modificação debruçada na janela. Olhava o anel como se ele um dia lhe revelaria um segredo. O pai progrediu na carreira pública, a mãe revelou-se uma cozinheira de mão cheia e abriu um restaurante muito freqüentado no centro da cidade. Bruna fazia a faculdade de veterinária. A vida da família da rua Florida adequara-se ao novo mundo. Da história acontecida há anos atrás, poucos recordavam. Maria Isabel sempre olhava para o anelzinho, esperando. Andava ela agora com quinze anos.
A manhã nasceu fantástica, com um céu azul e os pássaros a dar seus rasantes. Cantavam eles suas canções prediletas de um tempo passado. Maria Isabel também acordou cedo, depois do café disse à mãe que ia até a livraria comprar um caderno novo. Logo que botou o pé na rua, instintivamente, olhou para o anel. Teve a impressão que ele estava mais brilhoso, como se tivesse aceso. No pensamento correu a idéia de que um grande enigma seria decifrado, estava chegando a hora.
Na primeira sinaleira parou perto do meio fio da avenida movimentada. Era preciso esperar o sinal abrir. Nesse momento, como um raio, um menino de uns cinco anos passou no seu lado em direção ao outro lado da via urbana, sem olhar para lado algum. Maria Isabel ficou apreensiva, pois era certo que um carro atingiria o menino, o atropelamento era inevitável. Foi então que Maria Isabel fechou com força os olhos, não queria ver a cena. E num impulso estendeu a mão esquerda - que estava com o anel -, direcionando-a aos veículos. No seu pensamento veio um pedido: “que os carros parassem imediatamente!”. E do seu anelzinho saiu um raio azul, luminoso, em direção à frota que vinha de encontro ao menino. Os carros, como que atendendo ao pedido do pensamento de Maria Isabel, pararam abruptamente. Maria Isabel ficou paralisada por instantes, e depois, nervosa, correu para casa. A Mãe, ao ver a filha tão inquieta, quis logo saber o que havia acontecido. Isabel contou a história, e enquanto falava, o céu da cidade de Morro Alegre escondeu-se atrás das nuvens escuras: uma garoa bateu fina, um cheiro de jasmim era sentido no ar.
Maria Isabel ficou por muito tempo admirando o anel, a vida lhe pedia uma decisão. Logo percebeu que seu anel tinha o poder de remediar a desgraça, desfazer o inevitável, controlar o imprevisível, mudar o curso das coisas. Naquela manhã ela decidiu que deveria seguir um novo caminho. Quando, à noite, todos reunidos na hora do jantar, Maria Isabel explicou que tinha uma missão que não sabia bem qual era, e que aquele anel tinha poderes fantásticos, era hora de enfrentar o mundo. O Pai, a princípio, não acreditou na história, falou que era coisa de adolescente. Que entendia que a filha via muitas coisas erradas no mundo, mas sair mundo a fora, com um anelzinho para sanar as desgraças do mundo, era demais. Mas ela tinha convicção no que dizia, era o destino que lhe apresentava um caminho. Na verdade, pai e mãe tinham medo de perder a filha. Num último esforço, a família pedia para que ela demonstrasse o poder do anel. Então Maria Isabel olhou fixamente para os olhos do pai e apontou a argola. Do rosto dele, lágrimas caíram e todos ficaram emocionados. O anel tinha um poder, não havia dúvida.


***


Assim se passaram muitos anos. Maria Isabel rodou o mundo, sempre com seu anel a realizar proezas fantásticas. Foram anos de trabalho incessante. Um dia, olhando-se no espelho, viu nas rugas uma vida dedicada à paz, a esperança, aos sonhos. Tudo aquele anel podia, era só Maria Isabel pensar que o raiozinho saía em direção ao desejo a ser realizado. Campos queimados, cidades destruídas pelas guerras, crianças famintas chorando: escombros de uma triste humanidade. E Maria Isabel pensava que era hora de descansar, voltar à cidadezinha, rever a família. Os braços de Maria Isabel já não tinham aquela força, os olhos não enxergavam bem, os calos doíam, o coração estava fraco, e o anel... bem, este já não tinha mais aquele brilho. Definitivamente era hora de voltar, de voltar a ter esperança de encontrar aquela cidadezinha que um dia se pareceu com uma árvore de natal plantada no morro. E reencontrar aquela casinha na rua Florida, o quintal e a grama verde, a mesa com violetas multicoloridas, e a janela de onde pudesse observar o céu. Magnífico e estranho céu.
E foi assim que num dia ela voltou, voando com os seus sonhos à Cidade de Morro Alegre. Por longos anos, ali, na casinha, ficou: lendo um livro, bebendo chá, acariciando a cachorra, olhando o infinito. Olhando o céu e pedindo que de lá descesse uma nuvem misteriosa e que se formasse uma linda flor que mandasse um raiozinho para cada habitante daquela cidade e do mundo. E que todos, no mesmo pensamento de bondade, tornassem a vida um sonho, agradável de se nascer, viver e amar.


Escrita em 1989
Para Maria Isabel Bezerra Branchi, minha sobrinha
Digitado em Março de 2005

TORMENTO

Tormento

Não sei exatamente o que sobrou de nós. Depois de mais uma batalha, logo ali adiante, novas conquistas e seguir avante.
Tenho uma grande vontade de viajar, levar em frente sonhos e tudo mais. Junto a mim as pessoas queridas, e os meus sonhos de igualdade e fraternidade, um mundo mais justo, utópico.
Depois desses anos todos, perdi muito, principalmente aquela doçura, aquele jeito romântico de encarar a vida. As dificuldades do dia a dia talvez tenham me levado a isso. Acho que não tenho enxergado o bastante, ou só o que vejo é uma busca constante por objetivos óbvios.
Meu queixo, por momentos, se põe a tremer, minha alma se isola e me sinto tão cansado, vejo que é hora de parar, de ficar sentado, de ver as coisas acontecendo e não dar bola para nada.
Deixo de falar coisas importantes e profundas, me entrego, e desisto do jogo mais duro. Penso muito em felicidade, mas não consigo ser feliz quando vejo que há tanto caminho a ser percorrido e há tanta gente infeliz, abandonada.
A vida está seca, o sangue já não jorra mais. Não tenho o que doar, nem mesmo às pessoas próximas que precisam tanto de mim. Queria ter super-poderes, superar e avançar triunfante, e levar comigo uma ideologia de paz.
Uma voz muito próxima me chama, busca a minha mão, o meu afeto, minha atenção. É hora de provar que ainda tenho forças, que ainda jorra uma esperança. Mas como?
Para onde foram meus ídolos, meus exemplos de vida? Há quem me espere com olhos atônitos, buscam e aguardam meus passos, a direção que vou seguir. É preciso avançar, deixar o que não se acertou para trás. Buscar.

2004

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...