segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MEU PAI NÃO QUER MORRER

MEU PAI NÃO QUER MORRER




Meu pai disse pra mamãe que quando a Sapeca morrer ele vai sentir muito.

Ele vive xingando a cadela:

- Sapeca, não faz cocô aí!

- Sapeca, para de latir, para de coçar, para! Fica parada!

Ele falou, depois de dois copos de vinho, que a Sapeca era a única que o entendi naquela casa. De fato, quando ele fala, a cadela levanta as orelhas, presta uma atenção de dar invejar. No meu caso, ciúme puro.

Lembro do dia em que a Vovó morreu. Ele não deixou a gente ir ao velório ver as velas nem as vozes veladas, ficamos em casa, o dia se arrastou porque nem na aula fomos. Quando, à noite, meus pais voltaram do enterro (um buraco, um caixão, terra em cima), vimos que naquele dia não teríamos brincadeira, nem piada, nem jantaríamos juntos. E a parte da janta sempre é a mais importante lá em casa. Quando a gente senta, todos à mesa pequena, as conversas são diversas e divertidas, rimos e eles nos xingam porque deixamos cair comida no chão, porque a comida está esparramada no prato, porque bebemos o suco antes da comida, e logo depois, estamos dando gargalhadas porque alguém, sem querer, largou uma bufinha, coisa pouca e muito engraçada. Minha tia Marília tem esse probleminha mas ela não acha graça, já consultou mais de uma dezena de especialistas, não tem jeito, tia Marília larga bufinhas a toda hora e não se sente feliz ou engraçada.

A gente olha pra Sapeca e vê que ela está velhinha mesmo. Será que os cachorros também vão pro céu? Papai disse que não acredita em céu, mas eu olho pra cima e enxergo o céu, só não sei como as pessoas se equilibram por lá porque não tem chão, né? Mas que tem céu, tem.

Essa cadela é mais velha do que eu. Quando eu cheguei ao mundo ela já estava na casa, ganhando lugar no pátio, latindo aqui e acolá, correndo um carteiro só pra não perder a forma. Olhando pra ela a gente tem um pouco de pena mesmo, parece bem gorda - mamãe diz inchada, o que nada tem a ver com enxada, enxame, enxaimel, as palavras são como linguiças, uma puxa a outra -, os olhos estão esbranquiçados, não late faz muito tempo e dentes confesso que não sei se tem, vou averiguar.

A Sapeca está meio parecida com a Vovó até onde me lembro. Sei que meu pai vai sentir muito porque esse negócio de despedida é complicado. Quando a minha tia Alva se separou do tio Vildo, a despedida foi complicada, vira e mexe eles vão num tal de Fórum pra acertar as contas do passado. Isso dá uma dor de cabeça na família toda, e olha que nenhum dos dois morreu.

Fico pensando que o melhor é aproveitar o momento, nem pensar que as coisas se acabam. Ouvi em algum lugar que não há morte, que as coisas viram encantadas, prefiro assim e vou aproveitando o quanto posso.

- Sapeca!

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...