segunda-feira, 28 de março de 2011

Os Anjos da São Carlos – Bonifácio

Os Anjos da São Carlos – Bonifácio

No frontispício da velha casa, como guardiões de um tempo presente, dois anjos decoravam a fachada azul. Ali, devido ao combate implacável contra o tempo, os querubins se deterioravam a vistas grossas dos transeuntes.

Um dia, Maria, a irmã mais velha, achou que era tempo duma reforma na frente da casa. Chamou um pedreiro passante que decepou os dois bustos num único golpe de picão. Milagrosamente, os anjos decaídos não sofreram nenhuma avaria significativa ao sentirem a dureza da laje grês quando bateram no chão.

- Qualquer ventinho poderia derrubar-lhes, justificou ela.

Bonifácio, menininho, perguntou:

- Mas os anjos não voam, mana?

- Voam, mas estes estavam cansados de tanto cuidar da gente.

Depois da reforma nunca mais se falou dos anjos nem nos anjos. Certamente foram levados da calçada pelos coletores de lixo e jogados nalgum parque da cidade para divertir as crianças. As crianças são as únicas que se divertem com os anjos, o resto da humanidade imagina.


crédito da imagem: foto de Míriam da Rocha Fernandes






quarta-feira, 2 de março de 2011

Moacyr Scliar – Bonifácio

Moacyr Scliar – Bonifácio

Sentei no auditório lotado e esperei com impaciência o escritor. Sujeito magro e sem graça, cabelo pintado e barbicha aparada, traje simples. Não tinha pinta de gente importante. Melhor: não tinha pose. Pensei em dar crédito, dar-lhe uma chance, afinal já eram quase cinqüenta livro publicados. Importante dizer que eu era jovem, um adolescente.

- Então, escrever é um trabalho como qualquer outro. É dedicar-se. É suar e fazer os miolos funcionarem, brigar com as palavras e fazer as pazes com elas. Se há dom? Certamente, todos temos inclinações para fazer as coisas. Eu escrevo. E minhas futuras histórias estão aí, soltas. Tenho a rede e as pego no ar. Levo com carinho para a escrivaninha do meu escritório e lá me debruço num trabalho de quebra-cabeça com as idéias, palavras, frases, personagens, histórias, sentimentos, ingredientes que posso misturá-los, como um bolo. Escrever é o meu trabalho. Ofereço um pedaço do meu bolo aos leitores. Se gostarem, isso me alegra profundamente, e me habilita a oferecer o resto dele. Ah, também sou médico sanitarista. Trabalhei muito tempo na Santa Casa de Misericórdia. Também jogo basquete, mas isso não vem ao caso.

A voz era de uma doçura impressionante. Eu fiquei desconfiado como só os jovens podem desconfiar das coisas mais doces que a vida pode nos oferecer. Julguei que se tratava ou de um grande escritor ou um grande vendedor de sabonetes. A minha juventude intrometia-se num julgamento mais doce.

Um colega ao lado me segredou:

- É Judeu!

Como eu não sabia se ser judeu era bom ou ruim, dei de ombros. Já tinha ouvido noutros tempos:

- É italiano, não vê! É russo o coitado. Só podia ser japonês... Argentino, o cara é.

E por aí, adiante.

No final do encontro, com “O Ciclo das Águas” nas mãos, fui buscar um autógrafo, um prêmio por minha participação. Eu estava magnetizado. Perguntou meu nome, deu um sorriso generoso e escreve:

“Ao Bonifácio: à sua altura e inteligência”.

Agradeci. Saí da sala com o livro no braço, pensando:

- Êta Judeuzinho inteligente.

crédito da foto: Deodoro Branchi, em SC


Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...