sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Vendo Cadeiras

Vendo Cadeiras

Maria não vendeu nenhuma cadeira naquela manhã. Também pudera, aquilo não era coisa para vender. No máximo lenha pra fogueira de São João. Nem de graça o conterrâneo queria, o povo é inteligente para essas coisas, capaz de quebrar na primeira sentada. Dentro do brique tinha coisa pior. Ventilador queimado, talheres imundos, guarda-roupas sem portas, lonas plásticas usadas, bonecas sem cabeça, guarda-chuva sem cabo, filtro de água furado, cama sem perna, lustres diversos, vinis, fitas cassetes, livros, revistas, lápis, alfinetes, dedais, linhas, algerosas, geladeiras inúteis. E muitas outras porcarias que não valiam nada.

Maria ficou na frente da loja a manhã inteira, esperou o cliente que não veio. O café tomou, e comeu um bom pedaço de pão. A menina do acesso três, que poderia ser sua netinha se tivesse casado, tido filhos, lhe trazia sempre alguma coisa para comer. Uma menina boazinha.

- Nada? Não vendeu nada?

Maria não vendeu as cadeiras mas ficara feliz pelo movimento das pessoas na calçada. Todas bailando pelo sopro suave que movimenta as coisas de Deus. Esses transeuntes, as folhas das árvores, os pássaros aqui e acolá, cachorros e gatos, nuvens, lhe oxigenavam a vida.

Passou um velho conhecido, morador do beco, perguntou:

- Então, Maria, quando casas comigo?

Maria respondeu que quando vendesse duas cadeiras, e se riu muito faceira, coçando as pernas tomadas pelo estrago dos mosquitos.

A vida era boa, as coisas iam ocorrendo. Um dia encontraria um comprador, um coração, um bom café com leite e pão, uma saudade boa. Não reclamava, viver era mais que suficiente. Viver era bom demais.



sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Hoje Vendo Duas Cadeiras

Hoje Vendo Duas Cadeiras


Conto: um instantâneo tirado às pressas.


São sete horas da manhã e ela já abriu a precária loja.

- Hoje vendo pelos menos duas cadeiras, falou à gata, enroladita na almofada.

São sete horas, o tempo está úmido e fechado. Ela arrasta aquelas cadeiras velhas para a frente do estabelecimento. Um brique caindo aos pedaços onde quase nada pode se encontrar de prestável. Só mesmo num desespero para se comprar qualquer coisa, e encontrar algum vivente mui necessitado.

Maria tem quatro cadeiras para vender, uma de cada tipo e uma pior que a outra. Arrasta as cadeiras para a frente da loja, quase lhe falta força. Maria tem sessenta e sete anos de vida aguerrida.

A loja é herança do pai, falecido há mais de dez anos, que iniciou o negócio para complementar a miserável aposentadoria do governo. Vender para pobre não tinha dado certo, afinal o coração era mole, na hora de cobrar a porcaria que não servia mais, dava desconto e perdia dinheiro.

Maria não tinha aposentadoria, nem a miserável pensão, nem o coração do pai. Levava como podia o pequeno depósito, de quinquilharias invendíveis.

- Hoje vendo pelo menos duas cadeiras, resmungou sentando-se na menos deplorável delas.

Maria aguardaria com esperança algum interessado no negócio. Ou esperaria alguém se compadecer do quadro curioso, daquele instantâneo tirado às pressas. Pelo menos havia a claridade, um sol apareceria. Tomaria um bom café com leite e pão se vendesse as duas cadeiras. E se não vendesse nenhuma? Bem, pensaria nisso depois.









segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Dona Lúcia

Dona Lúcia


- Entra menina!

Disse para a cachorrinha que empacava na soleira da casa, que entrasse de uma vez. Que todo dia, depois dos passeios, era a mesma historinha, e que a paciência acabava um dia, viu! Mamãe tem mais o que fazer.

Dona Lúcia é uma daquelas senhoras que se apega aos bichos e as plantas porque há muito tempo perdeu a esperança nas pessoas, suas atitudes suspeitas, temporárias, questionáveis. Na sua casa coabitam uns dez animais: cinco cachorras, dois cachorros, uma gata e um gato; e um sabiá cego que achara na praça, em frente a sua casa, piando. E plantas e folhagens e macegas muitas. E, ah, tinha um monte de bugigangas imprestáveis que recolhia da rua, também. Quem sabe um dia precisasse, quem sabe.

Disse que é por isso que sou assim, tu não entendes, mas a vida é uma grande confusão e que ninguém acredita mais em nada que é bom. Disse, entra de uma vez, tenho que passear com os outros e ainda molhar as plantas. Disse que a avenca que era tão lindinha está feia e a samambaia está fora de moda, mas um dia tudo o que era bonitão chique tinha pendurada na sala, mas depois, quando o povo começou a usar nas suas casinhas, ficou brega e aí as folhagens foram caindo de moda e voltou o tapete persa que nunca caiu do gosto popular.

Disse que preferia viver assim, falando com os bichos e verde, reclamando e já se desculpando porque tinha parado de acreditar nas coisas todas, essas interligações infinitas. Que o cabelo nunca ganharia tinta, nené, que batom não passaria, nunu, e que não se importava com que os outros pensassem, que não se aborrecia com julgamento e sentenças tolas, e que Deus deveria estar muito envergonhado da criação.

Importava-se com os cachorros e gatos abandonados, e com as plantas e folhagens que davam uma alegria enorme para os seus olhos e sua vida.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Uma Dor Nas Costas

Uma dor nas costas

Eu não vinha me aguentando em pé. Não porque tivesse bebido, nem porque tenha trabalhado demais, nem por coisas do coração. Nada disso. Tratava-se apenas de uma dor nas costas, - dizem que é lombar, que me deixava e deixa desequilibrado, meio torto, desanimado. Ainda tenho uma dificuldade forte de sair da cama e encarar os primeiros passos.

Nessas horas e noutras muitas também, para passar meu desconforto com as coisas do mundo, lembro de uma senhora que encontrei no estacionamento do supermercado. Fazia um calor de quarenta graus, o asfalto de piche colaborava, e deparei-me com aquela velhinha que vinha pela casa dos noventa anos, caminhando com apoio da bengala, numa lentidão confiante, como se tivesse um objetivo a alcançar, um pódio. Eu, que vinha com minha dorzinha zélecozéco, apequenei-me num comparativo vexatório. Não me contive, e educadamente perguntei:

- Boa tarde! De onde vens, para onde vais, vovozinha?

- Olá, meu netinho. Faço sempre minha caminhadinha como forma de tapear o futuro certo, o que dali vem adiante, firme no propósito já traçado no início.

Tenho tido, desde sempre que a memória alcança, essa dor nas costa, na lombar, dizem!, mas desde então ela não me vence porque lembro daquela senhora que a passos de formiga faceira ia trilhando e enganando sorrateiramente algum encontro inapelável. Agarra-se à vida é um grande negócio porque é tão bom viver.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Calunga, um miserável

-Não há mais novidades nos miseráveis.

-Se calunga tivesse sido personagem há cem anos atrás, certamente traria interesse na leitura. Hoje não. Não passa de um andarilho doente, corcunda, sujo.


O homem é dono da praça. De mãos no bolso, enfrentando o vento minuano gelado, Calunga faz seu exercício matinal. Não dormiu a noite inteira, passou e tem fome e frio. É que mesmo na sua demência, sabe, por experiência, que se dormir ou vacilar, será atacado pelo inimigo, um outro calunga.

Calunga é um morador de rua. Está sujo, é corcunda, é quase invisível. Seu território é uma praça localizada perto do centro da cidade. Vive da caridade alheia ou do que os pombos rejeitam das migalhas jogadas pelos velhos desocupados, desempregados, desiludidos, dos bancos.

Calunga nunca aprendeu a falar, não gesticula. Calunga só olha. É um olhar profundo, magnetizador. Quando se olha para ele, e se deve ter coragem para isso, sabe-se que ali está um homem que lhe pede alguma coisa: outro olhar, uma migalha, um meio sorriso. Calunga precisa de algo, pode crer.

Mas Calunga nasceu cem anos atrasado. Ele faz parte de um batalhão de miseráveis que nos dados estatísticos são como mercadorias extraviadas, estragadas, imprópria para uso, vencidas, roubadas. Ele é o roubo do supermercado. O mendigo Calunga, como mercadoria que perde o valor, vai para gastos futuros, uma conta que logo adiante alguém vai ter que pagar.

Calunga é o dono da praça, isso sim. Tem uma calça de tergal, não está mal agasalhado, possui uma corcunda enorme, circunda a praça para ver se houve avarias durante a noite. Calunga gosta de atirar pinha no pinheiro. Ele é um zelador. Logo que o sol se torne mais forte, que dê um conforto térmico à carcaça do guardião, Calunga vai descansar da sua noite longa de vigília. Depois de um merecido sono ao pé do jacarandá, lá pelas três da tarde, despertará para uma ronda pelos restaurantes do bairro a procura de comida. Certamente alguém o olhará nos olhos, e certamente vai ler nos seus olhos o que pede, e lhe dará um conforto. Os olhos de Calunga expressam todas as suas necessidades.

Calunga e o narrador deveriam ter nascido há mais de cem anos atrás. Ambos são anacrônicos, piegas, e não rendem um conto decente. Mas insistem assim mesmo. Teimosia.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Respeitável Público: Feliz Aniversário

Respeitável Público: Feliz Aniversário


Chegamos cedo. Era outono e precisávamos esticar a lona antes que a chuva prevista desabasse na pequena cidade. Mãos fortes e ágeis exerceram a arte de montar a barraca para o circo. O mastro era tarefa de homens. Éramos sete. As mulheres, três Marias, no camarim improvisado em lona precária perto do caminhão, arrumavam as fantasias: palhaço, bailarina, pierrô, saltimbanco, domador. Tios e tias escolhiam os milhos das pipocas e descascavam os amendoins; sobrinhos arrumavam os chaveirinhos. Fotografia de monóculo para a memória não trair a lembrança. E amigos mais que ajudavam na montagem do espetáculo.
Por volta do meio dia o público surgiu das pequenas ruas e chegaram à praça central. A música circense propalada pelos frágeis alto-falantes animava os espectadores que adentravam na encantada grande lona multicolorida. A entrada era quase franca, um presente.
Ressonaram os tambores e o apresentador convocou o público a participar aplaudindo os artistas ainda tímidos a espera da chamada triunfal. Gargalhadas com os palhaços, expectativas com as bailarinas, emoção com o pierrô, sustos com o domador de cachorros, e umas pulgas acrobatas acalentadas pela imaginação de uma platéia cheia de esperança.
Uma hora e meia de espetáculos. Todos felizes, deram vivas à alegria, à risada sem compromisso, à ilusão, à arte do artista.
Muito satisfeitos, principalmente o anfitrião, os trabalhadores da arte brindaram ao sucesso daquela apresentação. Cidade pequena, momento único, sem outra sessão. Ano que vem repetiríamos o ato se os deuses assim quisessem. Desmontamos a grande lona na promessa de mais um ano com votos de saúde, emoção e felicidade.





quarta-feira, 18 de abril de 2012

FELIZ ANIVERSÁRIO

Feliz Aniversário


Vinha eu subindo a rua sossegada, arborizada, ouvindo os pássaros. Rua de paralelepípedos que, reluzentes, brincavam de pisca-pisca com o sol. Era manhã, ao meu lado minha irmã que conversava e sorria.
Vinha eu, mais contente ainda, andando em pernas de pau, dando gargalhadas com o meu equilíbrio.

Era dia do meu aniversário, eu estava chegando aos quarenta e quatro anos. Mana e eu Íamos ao supermercado, comprar o bolo do parabéns, do feliz aniversário, das palmas, da vela comemorativa.

E eis que surgiu aquela boa amiga a qual não encontrava há tempos. Abraçou-me:

- Feliz aniversário, amigo. Continuas o mesmo, brincando de pernas de pau...

Estava feliz, não me importava a minha infantilidade, estava me divertindo e só a mim competia o que pensava sobre estas coisas de nunca crescer.

Subíamos mais um pouco a lomba. Virei e olhei a amiga que acenava com a mão esquerda enquanto a outra segurava um balão vermelho. 




segunda-feira, 26 de março de 2012

Jogo de Damas

Jogo de Damas

Era à tarde e era outono. Eu e o Toninho resolvemos jogar damas. Pedimos a instrutora o tabuleiro. Sorrindo, olhos verdes-inesquecíveis, disse-nos que faltavam as peças. Fomos ao zelador saber se ele tinha tampinhas de cerveja. Não. Mas tenho um cabo de vassoura. Serrote. No primeiro dia ele serrou os toquinhos dando formas arredondadas. No segundo ele comprou a tinta azul e pintou as primeiras doze peças. No terceiro dia ele pincelou as vermelhas. Secas, no quarto dia, sentamos no banco de cimento e arrumamos com ansiedade as peças. Enquanto discutíamos quem iniciaria o jogo, as tipuanas libertavam suas folhas no saibro da pracinha.











Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...