sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A LOJA DE NATAL - CONTOS

Alexandre Henrique Branchi


A LOJA DO NATAL

(CONTOS)


A BEATA


Envelhecida, quatro filhos. Quem dera nunca os tivesse. Todos os dias praticava suas domésticas crueldades, todo o santo dia. Um dia maltratava um; outro dia outro, depois outro e outro. Assim era sua vida. Mas a consciência aquietava-se quando entrava na igreja, olhava o pastor, gritava, levantava as mãos, sorria, chorava. Pedia perdão, fazia promessas, orava. Sempre, todas às tardes, às seis horas: missa. Saía da casa do Senhor leve, solta, preparada para novas e cotidianas maldades. Uma tarde, durante o culto, num 25 de dezembro, a voz Demoníaca encheu-lhe os ouvidos: “-Não fui eu quem nasceu hoje. Agradeço-te. Fomenta-me em teu peito com desumanidades. Fomentam-me com falsa igreja, com falsos atos, rezas e suplícios”. A velha, desesperada, correu para fora da igreja, ajoelhou-se na calçada e pediu perdão a Deus. Por um instante, divino!, o mundo parou: a humanidade olhou na direção daquela beata velha e esperou pela palavra de Deus. Deus não tardou. E com sua voz gutural proferiu em todos os idiomas: “-Neste momento meu filho está nascendo, e ele está levando amor, compaixão, bondade e compreensão. E naquele segundo Deus percebeu que toda a sua criação estava Lhe ouvindo. O momento mágico pouco demorou a desfazer-se. E no segundo após Deus constatou que poucos Lhe ouviam. Deus via a beata voltar para casa e pressentia na própria carne as iniqüidades que ela iria cometer com seus filhos, por séculos e séculos.

O HOMEM QUE TOSSIA MUITO


Enquanto a cidadezinha cortava o peru e brindava o nascimento do Filho do Pai, ele morria tossindo, sem poder dizer as últimas palavras. Era daquelas tosses ininterruptas. Era muito mais que uma tosse: era um ai terminal. Os filhos do pai, em volta, queriam escutar as últimas palavras, o derradeiro pedido. A vida do pai, antes da terrível tosse, foi praguejar aos que andavam a sua volta. Sabemos o que ele gostaria de implorar: “-Hoje, perdoem-me”. Mas a vida não lhe deu trégua naquele último dia. A vida lhe deu trégua o tempo todo, menos naquele último dia. Tarde. Antes do último suspiro, tudo o que ele pôde fazer foi criar uma perceptível lágrima no canto do olho, todos notaram. Lágrima que correu até o travesseiro e extinguiu-se no ruído constrangedor daquela tosse. Num último momento, nobre, a lágrima implorou todos os perdões de uma vida mesquinha, pobre, sem luz, sem bolas de Natal.


A MULHER QUE NÃO DISSE UM AI


A ceia estava na mesa. Enquanto ela arranjava o prato das frutas natalinas, ele, no quarto, às escondidas, arrumava suas roupas para partir definitivamente. Tiveram três filhos. Depois do nascimento da última filha, ele lamentou a vida, desprezou a humanidade, procurou outras mulheres. Ela ficou calada, nada contestou, não se amargurou. Triste, via a transformação do marido. Nada ela fez de errado: lavou com amor e carinho todas as camisas, sempre desligou humildemente o programa predileto de televisão quando o amado chegava cansado do trabalho. E daí por diante. E ele, então, saiu do quarto, passou por ela, não disse adeus nem feliz Natal. E ela, inutilmente, enquanto a vermelha vela queimava e a porta batia como o martelo de uma sentença inapelável, perguntou-se onde havia errado. E aí sim. Bebeu, chorou, pensou em se matar. Aquela noite iria marcar o resto da sua existência. Naquela noite ela descobriu, mesmo triste e contrariada, que quando a farsa é descoberta, um menino nasce e trás consigo o verdadeiro amor que um dia possa existir.


O HOMEM QUE FOI EMPURRADO PELA VIDA


Morreu numa tarde de Segunda-feira. Uma Segunda-feira fria, antevéspera de Natal. Andava. Apertava entre os dedos o dinheiro para comprar o pão. Um garoto de rua, na tentativa de furtá-lo, empurrou-o bruscamente. Sem forças nas pernas, cambaleante, bateu com a cabeça no meio fio da calçada, há poucos metros da padaria Vitoriosa. Nunca, até então, tinha sido assaltado. A vida lhe consumiu num empurrão. O menino Jesus, prestes a nascer, o encontro no corredor tênue que faz ligação entre a vida e a morte. O homem, não percebendo quem era o menino, perguntou: “-Por que me empurraste?”. E Jesus respondeu: “-Para que pudesse me conhecer. Eu sou a mão que te empurrou para a vida, eu sou a mão que te empurrou para a morte. Eu sou a mão, sempre”.

O INDIGENTE


À tardinha, a cidade iluminada pelas luzinhas de Natal. O indigente ia pela rua, alheio a qualquer celebração. Sujo, castigado, barba e cabelo crescidos. Passou em frente à janela de uma linda casa, branca, de fachada iluminada por mil luzinhas, e estrelada por um fofo papai Noel abisonhado. O louco tirou o pênis para fora das calças, estimulou-o até enrijecer, e iniciou uma frenética masturbação. Quem passava, olhava e admirava. Curiosos, falseavam os olhares diante da exposição constrangedora. Ninguém chamou a polícia, nem fez maiores ós. A humanidade acostumou-se a cenas insólitas. O indigente ejaculou em frente à janela da linda casa branca, guardou o membro murcho e saiu tão demente, tão inocente quanto qualquer outro louco poderia sair. Da alva casa luminosa, meia hora depois, já noite, uma linda senhora de saltos altos saiu com sua cachorrinha para o passeio noturno. A cachorrinha, ao ultrapassar o portão, esperta, cheirou o semen na calçada de basalto, balançou o rabinho e deitou de costas sobre as nódoas. A senhora de saltos altos estranhou a atitude. Puxou a cachorrinha. Puxou a cachorrinha e pensou: animais.

O GRANDE POUPADOR.


Era final do mês e ele ainda possuía muito dinheiro na conta corrente. Não doava, não comia para economizar. Durante todo o mês, poupava. No fundo da sua pequenez o que ele queria é que os colegas de repartição viessem pedir-lhe algum emprestado. Quando isto ocorria, dizia aos pedinte que também não tinha dinheiro, que gastara em bobagens, que já emprestara a outros. O Natal se aproximava e o dinheiro que tinha no banco dava para comprar um caminhão. No dia 23 de dezembro, um colega veio pedir uma pequena quantia para fazer a ceia. O grande poupador não deixou por menos: não emprestou alegando, também, falta de dinheiro. O pedinte teve um Natal muito pobre e deprimente. O poupador teve um Natal muito farto, pediu para que todos os familiares dessem as mãos e agradecessem a vida boa que Deus lhes dera. Deus ficou triste com aquele pedido. Chorou pelo seu fracasso. Antes um pouco do infinito, para compensar o seu erro, o Criador ainda chegou a tempo de evitar a explosão de uma estrela. Um brilho a menos na humanidade, lamentou a Pedro, João e Judas.

O ADOLENCENTE APAIXONADO


Pediu que a esposa e as filhas fossem indo na frente à casa da sogra, era dia de Natal. Trancou bem a porta principal e dirigiu-se ao seu quarto. Na última porta do guarda-roupa, à esquerda, dentro de uma caixa de sapatos, retirou várias cartas antigas. Procurou atentamente a de envelope esverdeado. Abriu-a lentamente e iniciou a leitura saboreando cada palavra. Era uma poesia, destas bem amorosa, escrita por ele na adolescência. Diziam os versos que a morte o viesse levar, que não havia mais razão para viver, que nada valia um centavo. E na última estrofe a rima era pobre, o poema se revelava infantil, apontava que nada se perdia se o mundo não conhecesse o medíocre poeta. E o segredo daqueles versos serem guardados com tanta precaução eram simples: o poeta menor aprendia a amar a humanidade, aprendia a ser filho do bem.


A MORTE DO PAI


Vestiu seu melhor traje e foi ao cemitério. Não era dia de finados, o mundo cristão comemorava o nascimento de Cristo. Para ele, o falecimento do pai. No cemitério, além das almas dos mortos, raros visitantes. Sentou-se em frente ao túmulo do pai, falecido tragicamente num acidente de automóvel. Esperou que a noite baixasse, locomoveu a lápide de mármore e iniciou saltos frenéticos por cima dos restos mortais. Saltou até cansar, e antes de fechar a sepultura, descansou e descansou. Fechou. Voltou para casa pensando na pobreza do seu espírito, na dor da sua alma, na descrença no Pai, na miséria da humanidade e nas coincidências absurdas.


O HOMEM E A PIZZA


Quando chegou em casa, passando do meio-dia, e não encontrou a mulher e os filhos, pensou abruptamente em morrer. Mas a fome que sentia era tamanha, e os problemas na repartição eram tantos, e as contas a pagar eram muitas, que abruptamente desistiu daquela ridícula idéia. Discou para o telepizza, ligou o jornal do meio-dia, cantarolou uma musicazinha. O motopizza chegou, entregou e voltou. O homem pegou ketchup e mostarda na geladeira, prato, talher. Almoçou. Pensou em decorar a fachada da casa com luzes coloridas, decidiu comprar presentes e distribuí-los em vilas carentes no Natal que logo chegaria. Antes de sair e voltar ao trabalho, num reflexo de memória, pensou: talvez amanhã eu me mate.

O ERRO DO PAPAI NOEL


Eram grandes amigos, estavam sempre unidos, trocavam idéias e ideais. Eram irmãos de fé, de coração. Num certo Natal, Papai Noel arranjou namorada para um e a amizade estremeceu. Num ano novo nem se cumprimentaram. Na Páscoa não suportavam olhar um para o outro. Em trezentos e sessenta e cinco dias, se detestavam. Quem conhecera aquela amizade e via aquela desavença mútua, pouco podia perceber. Só quem compreendia a separação eram os dois ex-amigos: o amor e a imperdoável injustiça do Papai Noel. Papai Noel não tem conseguido ser justo.

O SER HUMANO E SUA BOA INTENÇÃO


Estava caminhando em pleno calçadão da Rua da Praia, no centro da cidade grande. As lojas decoradas com luzinhas e papais Noel com certeza reportavam a uma grande festa, menos a celebração do nascimento do menino. Numa das esquinas, quase às escondidas, deparou-se com um jovem cego tocando teclado elétrico. Passou rapidamente pelo músico e ouviu um tímido som . Pensou: amanhã coloco um bom dinheiro na caixa deste músico-cego-pedinte. Sentiu no coração uma piedade comovedoras, quase chorou. Talvez fosse o colorido das lojas, a exuberância dos shoppings, talvez. Ficou com pena do tímido som do teclado, -não do cego!-, da impotência da caixa de som do cego. Na repartição, à tarde, pensou na questão com carinho. Jurou, então, que pingaria, até o final daquele ano, alguns trocados na caixa do pedinte. No dia seguinte, de manhã, caminhando pela mesma rua , avistou o jovem cego há uns dez metros. Fez menção de colocar a mão no bolso e pingar a moedinha. Mas não o fez. Na repartição, à tarde, esqueceu do cego. E assim passou sua vida. Passou muitos vezes por muitos cegos, indigentes, necessitados, e nunca deu um centavo. Fora um homem de boa intenção, e de sorte. Morreu naturalmente, dormindo.

O HOMEM QUE OROU POR NÓS


Quando a esposa morrera tragicamente tomada pelo câncer, não teve dúvidas: por conselho de um tio, resolveu freqüentar a igreja, amenizar sua dor, sua estada na terra. Rebatizou-se nas águas, iniciou a leitura do evangelho, vestiu-se de terno e gravata, fez novas reflexões sobre o Natal. Todos os meses depositava o dízimo. Do Criador, só cobrava uma coisa: sua dor. Ia ao culto todos os dias após o trabalho. Tornou-se um homem bom, pregador do verbo de Deus. Certo dia, sentiu dores fortes no peito. Muito a custo foi ao médico. Diagnóstico: câncer. Continuou indo à igreja, depositando o dízimo, orando pela humanidade. Um dia não pode sair de casa. Um mês depois, pecador mas cheio de fé e esperança no ser humano, na humanidade, na vida, morreu. O Pastor foi o que mais sentiu sua ausência no mundo: a caderneta do dízimo não recebeu o carimbo impresso: pago. O homem foi para o céu e perguntou a Deus: “-Onde está minha mulher?”. Deus respondeu: “ Dentro de ti. Junto da tua fé. Contíguo ao teu amor”.

O CEGO


Naquele dia acordou feliz. Não destas felicidades irradiantes, explosivas, de causar inveja. Humildemente feliz. Barbeou-se com cuidado, vestiu-se combinado, passou perfume por trás das orelhas, nos punhos. Saiu à rua. E mesmo não concordando com toda aquela propaganda enganosa do Natal, acreditou que aquele era um dia feliz. Antes de chegar à repartição, assustou-se com um cego que apregoava a venda do bilhete lotérico, extração Papai Noel: milionário!, berrava o cego. Voltou-se ao vendedor, comprou-lhe a sorte. Saiu imaginando felicidades: se ganhasse daria algum ao cego. Mais: compraria muitos daqueles sonhos estampados nas vitrines. Ainda mais: preencheria todos os cupons para concorrer àquelas promoções de automóveis. Pois, então, correu o sorteio: ganhou, ficou rico. Largou a repartição, viajou, esqueceu o cego e sua vida ficou feliz. O cego continuou vendendo muitos outros bilhetes premiados, em vários outros lugares, tornando muitas pessoas ricas. Ninguém nunca retribuiu ao cego. O cego nunca ficou feliz. O cego era Deus e ninguém nunca chegou a desconfiar.

A LOJA DO NATAL


Era funcionário público, não ganhava mal. Gostava de andar de ônibus , olhar as fachadas das casas antigas de Porto Alegre. A época era de Natal, a cidade estava enfeitada, reluzente. No trajeto de volta para casa, atentava o funcionário, todo o santo dia, através do vidro do coletivo, uma loja miserável, azul caiado, com pouca mercadoria à venda, nada de adereços natalinos. Aquela loja o chamava à realidade. E sempre, como um guardião, observava um velho que ficava à porta do estabelecimento, esperando o raro freguês. Ganhava, o trabalhador da repartição, bem. Resolveu, como a época era propícia, descer algumas paradas antes de casa, passar pela loja e comprar qualquer coisa. Não sabia exatamente o motivo da razão emotiva daquele ato. Sentia. Sentia uma atração. Sentia uma atração inexplicável pela loja, pelo velho, pela ausência de freguês. Assim o fez. Desceu do ônibus, em frente à loja, caminhou em direção ao guardião. O velho o observou pelas grossas lentes esverdeadas, fez um lento aceno positivo com a cabeça e deixou o freguês entrar, seguindo-o em escolta até um pequeno balcão improvisado. O comprador em potencial observou que a loja localizava-se na ante-sala de uma casa tomada pelos comedores de madeira. Assim que o comprador parou, o velho fez o mesmo. De traz de uma cortina de banheiro, saiu um homem aparentando quarenta anos. Homem singular: cabelos compridos, mãos que tremiam, um tremelico constante na cabeça. Gentil, o vendedor perguntou o que o freguês queria. Sem saber o que realmente comprar, olhou a prateleira, botou os olhos num vidro que continha botões de camisa: “-Botões, os do vidro”, apontou. A figura singular pegou, tremendo, o vidro. Despejou velhos botões no balcão e perguntou quais ele queria: “– Todos. Qual o preço?”. O vendedor hesitou. Deu um grito e chamou a mãe que apareceu, também, por traz da cortina: “– Ele quer todos os botões. Quanto custam?”. A mãe, que era filha do velho que continuava inabalável atrás do comprador, fixou seus tristes olhos no comprador, hesitou por instantes, e como se vendesse a mercadoria mais importante da sua vida, revelou que custavam cinco dinheiros, para espanto do pai, do filho e do espírito daquela época. O comprador retirou a cédula da carteira, enfiou os botões no bolso, saiu agradecendo. Voltou para casa a pé. Contou à esposa da aquisição. Decorou sua árvore de Natal com botões coloridos. Foi o Natal mais verdadeiro daquela família. Foi o Natal mais belo daquela família da loja. A loja azul caiado, passado o Natal, fechou. Em seu lugar, e também no resto do quarteirão, construíram um shopping center, lindo, imponente. Shopping que nunca chamaria a atenção do funcionário público, shopping que nunca teria velhos botões para vender.

* * *

Capa: Mila da Rocha Fernandes, minha esposa. -
Editado em dezembro de l998, do jeito que deu.
p.s. a capa não saiu no blog porque sou meio analfabeto para essas tecnologias, mas um dia coloco.

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...