Bonifácio: O Relógio de Pulso
Meu pai se chamou, durante sessenta e cinco anos, de Deodolindo. Um nome lindo para uma vida sem surpresas. Meu pai trabalhou como sapateiro, fumava palheiros, gostava de mulheres, de jogos. Sorria para os amigos e xingava minha mãe, sempre que podia e quando o feijão queimava. Meu pai tinha papas na língua e não tinha poupança. Era paupérrimo.
Meu pai morreu solito, num desses hospitais públicos que mais parecem uma prisão do terceiro mundo. Trocavam-lhe as fraldas três vezes por dia, alimentava-se através do soro. Dormindo, ajustava contas com Nosso Senhor. Dos olhos, sempre a lágrima clara, que nunca pude verificar se era pela vida, pelos filhos, pelo encontro com a morte e o céu-paraíso que tanto pregara em vida.
Mas, de tudo que pouco rendeu, uma coisa dele me ficou. Numa das raras vezes que fui visitá-lo, me deu um relógio de pulso, de fundo verde, caro, muito acima das suas posses. Antes de me entregar, Deodolindo me disse:
- Toma. É o tempo. Viste como o tempo passa, mas os ponteiros sempre voltam ao mesmo lugar?
Foi aí que a ideia de tempo rebateu em mim. Fiquei pensando muito sobre o que meu pai falara, aquele tempo que ele me dava, e refleti sobre a minha existência. Concluí, carente de maiores explicações, que o meu tempo estava lá na infância, oito ou nove anos de idade, e que hoje eu era aquele menino de lá, querendo sempre voltar e sempre amadurecido e sempre o mesmo. Não sei se melhor ou pior.
Não uso o relógio de fundo verde do meu pai. Sei que ele havia me dado o que de mais precioso tinha. Do relógio guardei o tempo, que o preservo, respeito e admiro. Meu nome é Bonifácio.
Em abril de 2010
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