terça-feira, 29 de abril de 2014

Bonifácio – A Pomada


Bonifácio – A Pomada


Eu não confio na minha mãe.
Quando eu nasci me deu o nome de Bonifácio talvez sonhando que um dia eu seria bom ou faria algo bem. Até agora nada, mas alimento esperanças. E minha mãe também, confessou-me.
Mas quero falar brevemente sobre minha mãe. Ela ganha dinheiro vendendo pomadas.  Assim foi:
A vida andava bem dura para o nosso lado. Faltavam coisas básicas com papel-higiênico dupla face, picotado e perfumado, jasmim ou alfazema, indiferente. Num dia iluminado ela foi ao cartazista e encomendou uma faixa. A faixa, que pendurou na frente de nossa casa, tinha o seguinte enigma: Vendo Pomada – Dona Cleci. E só.
A curiosidade das pessoas não tem limites e foi a partir do cartaz que tudo começou a mudar em nossa vida, incluindo a qualidade do papel higiênico exposto no trocador. A clientela batia na porta e perguntava por dona Cleci. O nome da minha mãe é Nila. Cleci ela puxou de alguma entidade do imaginário. Batiam na bem pintada porta azul e perguntava por dona Cleci. Quando ela atendia dizia eu mesma, pois não. Quando eu, dizia um momento, vou chamá-la.
A pergunta inevitável do cliente era qual pomada realmente ela vendia, e minha mãe repetia sempre a mesmíssima dissimulada resposta: para que queres a pomada? E a convidava para entrar,  e colocava a mão no seu ombro, e a levava para os fundos da nossa casa onde improvisara o consultório num quartinho em separado. A clientela sentava na cadeira imaculadamente branca e soltava suas queixas.
E apresentava suas mazelas, sem desamores, seus dissabores, sofrimentos, aborrecimentos, e essas coisas todas que travam a vida.
Mamãe Nila escutava a todos: mulheres, homens, jovens, velhos. Escutava tudo, concordava totalmente e por fim diagnosticava a tal pomada. E cobrava. Tratava-se de uma conselheira e inevitavelmente os clientes voltavam tempos depois, com outras dores. E mamãe escutava, concordava e vendia. Vi muitos clientes saírem do consultório esquecidos da pomada mas totalmente satisfeitos com o produto pago.
Vi um dia mamãe preparar a pomada e fiquei surpreso com seus conhecimentos químicos ou alquímicos. No selo colocava o adesivo: Dona Cleci – pomada. Todos iguais. E assim vivíamos naquele entra e sai e digo que éramos bem felizes.

Mas eu continuo não acreditando em minha mãe. Um pouco pela pomada e um pouco pela fé no meu nome.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Saudade

SAUDADE

Eu sou apenas um garoto ao teu lado, agora, aqui.
Vejo tu fazendo tricô, com tuas mãos experientes, o novelo azul, blusão pro colégio. A gente quase não conversa mas trocamos tanto sentimento que me comovo. Sei que logo vais me perguntar se estou com fome e tu me darás pão com manteiga. Sei que nossos cafés, pontualmente às quatro horas, são feitos de pão, manteiga e amor.
Eu sei que esse tempo não existe mais, eu sei que tu me deixou aqui, hoje bem mais velho mas com os mesmos olhos. Estou sentado nesse banco vermelho, olhando a praça, ouvindo os pássaros, vendo quem passa. Mas eu não posso deixar de inventar esse momento porque ele me faz tão bem agora.
Sentado ao teu lado, te vendo tricotar, sinto uma proteção enorme desse mundo mau. Eu do teu lado enfrento tudo e ainda sorrio. Tuas mãos experientes e teu olhar atento no trabalho me transmitem o gosto pelo viver. O mundo agora é bom. Simplesmente.

Sei que isso tudo só é possível porque invento, sou um inventor de sonhos bons. Neste tu estás. Porque inventar faz parte da vida e pode tornar tudo mais calmo e bom.

Ela Saiu

Ela saiu do apartamento numa terça-feira à tarde. Pensei,  já vai aproveitar a quarta e dar um rolé com as amiguinhas. Me deixou como se dei...