sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Calunga, um miserável

-Não há mais novidades nos miseráveis.

-Se calunga tivesse sido personagem há cem anos atrás, certamente traria interesse na leitura. Hoje não. Não passa de um andarilho doente, corcunda, sujo.


O homem é dono da praça. De mãos no bolso, enfrentando o vento minuano gelado, Calunga faz seu exercício matinal. Não dormiu a noite inteira, passou e tem fome e frio. É que mesmo na sua demência, sabe, por experiência, que se dormir ou vacilar, será atacado pelo inimigo, um outro calunga.

Calunga é um morador de rua. Está sujo, é corcunda, é quase invisível. Seu território é uma praça localizada perto do centro da cidade. Vive da caridade alheia ou do que os pombos rejeitam das migalhas jogadas pelos velhos desocupados, desempregados, desiludidos, dos bancos.

Calunga nunca aprendeu a falar, não gesticula. Calunga só olha. É um olhar profundo, magnetizador. Quando se olha para ele, e se deve ter coragem para isso, sabe-se que ali está um homem que lhe pede alguma coisa: outro olhar, uma migalha, um meio sorriso. Calunga precisa de algo, pode crer.

Mas Calunga nasceu cem anos atrasado. Ele faz parte de um batalhão de miseráveis que nos dados estatísticos são como mercadorias extraviadas, estragadas, imprópria para uso, vencidas, roubadas. Ele é o roubo do supermercado. O mendigo Calunga, como mercadoria que perde o valor, vai para gastos futuros, uma conta que logo adiante alguém vai ter que pagar.

Calunga é o dono da praça, isso sim. Tem uma calça de tergal, não está mal agasalhado, possui uma corcunda enorme, circunda a praça para ver se houve avarias durante a noite. Calunga gosta de atirar pinha no pinheiro. Ele é um zelador. Logo que o sol se torne mais forte, que dê um conforto térmico à carcaça do guardião, Calunga vai descansar da sua noite longa de vigília. Depois de um merecido sono ao pé do jacarandá, lá pelas três da tarde, despertará para uma ronda pelos restaurantes do bairro a procura de comida. Certamente alguém o olhará nos olhos, e certamente vai ler nos seus olhos o que pede, e lhe dará um conforto. Os olhos de Calunga expressam todas as suas necessidades.

Calunga e o narrador deveriam ter nascido há mais de cem anos atrás. Ambos são anacrônicos, piegas, e não rendem um conto decente. Mas insistem assim mesmo. Teimosia.

2 comentários:

  1. Fazia um bom tempo que eu não visitava o teu blog.
    Hoje, mais uma vez, enchi os olhos com essas histórias escritas à tua moda, da qual admiro. Parabéns!

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    1. Deroci, abraços.
      Obrigado pelo privilêgio da tua leitura.
      Feliz 2012.
      alexandre

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